13/07/2020

A formulação wesleyana da conversão.


Por Dr. José Míguez Bonino Teólogo Metodista


Deus se propõe a criar um povo santo e este propósito chega a ser uma realidade atual, experimentada, visível, quando homens e mulheres se voltam para Ele com fé. Talvez se possa resumir assim a mensagem de John Wesley. Estas são as boas novas. E são, verdadeiramente, boas novas para os pobres da terra – para as massas miseráveis dos deserdados que se amontoam nos novos centros industriais e mineiros, absorvidos pela crise do nascimento do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes da anomia social. Não somente eram aceitos por Deus como também podiam ser “feitos de novo” – receber um poder e uma dignidade efetivos, visíveis, inerentes, mensuráveis. Podiam chegar a ser sujeitos conscientes e ativos de uma nova vida. Suas obras contavam; sua vontade era livre. Numa sociedade em que o triunfo se constituía no significado da vida, oferecia-se o mais alto triunfo possível – acessível a todos mediante a fé. O ingresso nessa realidade é a “conversão”.


A maior parte dos estudiosos da teologia de Wesley concordam que ele identifica conversão com regeneração. Ainda que algumas passagens justifiquem um certa distinção, as discussões wesleyanas mais características do tema da regeneração podem ser tomadas legitimamente para apresentar seu conceito de conversão.

Em geral, podemos situá-lo dentro da estrutura doutrinal clássica protestante do ordo salautis. As ênfases distintivas de Wesley me parecem agrupar-se em torno de dois focos: a questão da continuidade e singularidade e a questão da “consciência” ou “experiência” da regeneração. A Wesley apraz explicara regeneração utilizando a analogia do “nascimento” quase em forma alegórica. Dois fatos se destacam nessa alegoria: De um lado o caráter decisivo da regeneração. Há um “antes” e um “depois”. A conversão marca uma volta decisiva (conversio, no sentido original) do pecado para Deus. Sabemos que Wesley abraçou por algum tempo a idéia (que Pedro Bohler lhe havia ensinado) do caráter instantâneo dessa mudança, mas logo vacilou a respeito para admitir uma variedade de possibilidades. Mas jamais duvidou que havia uma mudança, uma volta decisiva, uma diferença qualitativa criada por este ato de Deus e do homem, chamado conversão ou regeneração. Mas a analogia sublinha também a continuidade: é a mesma pessoa. Há uma vida anterior ao nascimento – com os mesmos órgãos de percepção e sentimento – que agora se torna atual e operosa pelo poder do Espírito. Mais importante ainda, a analogia é ampliada para referir-se ao permanente crescimento até a plena maturidade.

A conversão, desse modo, olha para trás, para uma humanidade real ainda que impotente, e olha para a frente, para uma maturidade humana ainda que imperfeita mas cada vez mais plena (até que lhe conceda, nesta vida ou na vindoura, uma perfeição total, a realidade completa do amor). O próprio Wesley não relacionou de maneira consistente a conversão à doutrina agostiniana da graça preveniente, que ele mesmo introduzira. Mas William B. Pope – sem dúvida o teólogo sistemático mais consistente da tradição wesleyana até o presente século o faz de maneira que dá à conversão um lugar próprio e distintivo, colocando-a no umbral da nova vida, como movimento pelo qual o homem, no poder dessa graça preveniente que em virtude da expiação que “rodeia e abarca”a humanidade inteira é acessível a todos, coopera com a graça salvífica de Deus,
volvendo-se do pecado para Deus.

Neste sentido, a conversão o ponto de encontro da busca humana e a graça de Deus, “o pátio exterior do templo cristão”. Entretanto Pope não limita sua interpretação ao âmbito estritamente religioso, mas antes, olhando a conversão também sob a perspectiva ética, afirma uma continuidade entre a operação do amor sob a graça preveniente e a transformação que o eleva ao amor da santificação.
Por certo que nos movemos aqui num terreno próximo a uma das possíveis – e recentemente dominantes – interpretações da doutrina católica romana. Mas isso não deve inibir-nos – como sustentaremos mais adiante – de prestar atenção a este significativo propósito. Tanto para Wesley como para Pope a conversão corresponde mais estritamente ao começo da vida cristã, como um “salto” decisivo inicial, diríamos “qualitativo”. Mas ambos admitem um uso mais geral do termo para referir-se às “crises de crescimento” da vida cristã. Esta vacilação me parece documentar uma vez mais a dupla ênfase em singularidade e continuidade que, tanto na esfera religiosa como ética, caracteriza a doutrina wesleyana da conversão. O outro aspecto é a bem conhecida ênfase na “experiência”, a consciência que acompanha a conversão: o homem é consciente da nova situação em que se encontra.

O novo nascimento testemunha-se a si mesmo à consciência, com uma auto-evidência que não necessita de provas externas, como não é necessário que nos provem qual é a luz do sol e qual a das estrelas. Entretanto não se trata de um mero sentimento subjetivo: deve ser reforçado pela qualidade de vida, a disposição e a concreta realização de atos de amor naqueles que o Espírito testemunha sua presença e operação.

Assim, a regeneração verifica-se a nível consciente tanto em sua dimensão religiosa como ética. E em ambas há novidade e continuidade. Na minha opinião, o ponto central se acha, no fim das contas, na consciência moral, que é por sua vez confirmada e elevada a um novo plano de autocompreensão e de realização. Se estas observações são válidas podemos resumir a doutrina wesleyana e da conversão tomando em conjunto os seguintes elementos:

a) ela se situa na perspectiva da busca humana de excelência moral;
b) gira em torno do poder capacitador da graça;
c) culmina no aperfeiçoamento da luta moral do homem, mas não mediante um mero crescimento quantitativo mas mediante uma mudança qualitativa produzida pela graça de Deus;
d) vincula a experiência ética prévia do homem ao seu subsequente crescimento na graça, e maneira que o homem novo (regenerado) é ao mesmo tempo a planificação e a instalação do homem velho (não regenerado);
e) invoca a consciência subjetiva – reivindicada pela ação correspondente – desta transformação fundamental.

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