Por: Timothy George. ( Teologia
dos Reformadores. 1 ed. Cap 3, p. 96-98. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições
Vida Nova, 1994)
A maior contribuição de
Lutero à eclesiologia protestante foi a sua doutrina do sacerdócio de todos os
cristãos. Contudo, nenhum outro elemento de seu ensino é tão mal compreendido.
Para alguns, isso significa apenas que não há mais sacerdotes na igreja; é a
secularização do clero. Dessa premissa, alguns grupos, notadamente os quacres,
defenderam a abolição do ministério como ordem distinta dentro da igreja. Mais
comumente, as pessoas acreditam que o sacerdócio de todos os cristãos implica
que cada cristão é seu próprio sacerdote, e, assim, possui o “direito do
julgamento privado” em assuntos de fé e doutrina. Ambos os casos constituem
perversões da intenção original de Lutero. A essência de sua doutrina pode ser
expressa numa única frase: todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos
sacerdotes uns dos outros.
Lutero rompeu
decisivamente com a divisão tradicional da igreja em duas classes, clero e
laicato. Todo cristão é um sacerdote em virtude de seu batismo. Esse sacerdote
deriva diretamente de Cristo: “Somos sacerdotes como ele é Sacerdote, filhos
como ele é Filho, reis como ele é Rei”. Mais ainda, cada membro da Gemeine tem parte
igual nesse sacerdócio. Isso significa que os ofícios sacerdotais são
propriedade comum de todos os cristãos, não a prerrogativa especial de uma
casta seleta de homens santos. Lutero enumerou sete direitos que pertencem a
toda a igreja: pregar a Palavra de Deus, batizar, celebrar a Santa Comunhão,
carregar “as chaves”, orar pelos outros, fazer sacrifícios, julgar a doutrina.
Lutero baseou sua afirmação de que todos os cristãos são sacerdotes no mesmo
grau em dois textos do Novo Testamento: “Vós [...] sois [...] sacerdócio real”
(1 Pe 2.9), e “nos constituiu reino, sacerdotes” (Ap 1.6).
O sacerdócio de
todos os cristãos é tanto uma responsabilidade quanto um privilégio, um serviço
tanto quanto uma posição. Deus fez-nos um corpo, um “bolo” (imagem favorita de
Lutero). Nossa unidade e igualdade em Cristo é demonstrada por nosso amor mútuo
e nosso cuidado uns pelos outros. “O fato de que somos todos sacerdotes e reis
significa que cada um de nós, cristãos, pode ir perante Deus e interceder pelo
outro. Se eu notar que vocês não têm fé ou têm uma fé fraca, posso pedir a Deus
que lhe dê uma fé sólida.”
Tudo isso
implica que ninguém pode ser um cristão sozinho. Assim como não podemos nascer
de nós mesmos, ou batizar a nós mesmos, da mesma forma não podemos servir a
Deus sozinhos. Aqui, abordamos outra grande definição da igreja apresentada por
Lutero: communio
sanctorum , uma comunidade de santos. Mas quem são os santos?
Não são supercristãos que foram elevados à glória celeste, em cujos “méritos”
podemos conseguir ajuda nos caminhos da vida. Todos os que crêem em Cristo são
santos. Conforme Paul Althaus disse: “Lutero trouxe a comunidade dos santos do
céu para a terra”.
Quando desejar
fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção para os vivos, não para os
mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu, o faminto, o sedento, o pobre que tem
esposa e filhos e sofre humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece seu
trabalho aqui.
Uma comunidade
de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família em que as
cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente – essa é a communio sanctorum .
Como Lutero
relacionava o sacerdócio de todos os cristãos ao ofício do ministério?
Enquanto todos
os cristãos têm parte igual nos tesouros da Igreja, incluindo-se os
sacramentos, nem todos podem ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só
“estado” (Stand),
mas uma variedade de ofícios (Amte)
e funções.
Lutero
considerava o ministério da Palavra o mais alto ofício da Igreja. O próprio
título, “sevo da Palavra divina” ( minister
verbi divini ), conota um papel essencialmente fundamental.
Rigorosamente falando, Lutero ensinou que todo cristão é ministro e tem o
direito de pregar. Esse direito pode ser livremente exercido se alguém estiver
em meio a não-cristãos, entre os turcos ou encalhado numa ilha pagã.
Entretanto, numa comunidade cristã, não se deve “chamar atenção sobre si
mesmo”, assumindo tal ofício por conta própria. Antes, deve-se “deixar ser chamado
e escolhido para pregar e ensinar no lugar de outros e sob o comando deles”. O
chamado é feito pela congregação, e o ministro continua tendo de prestar contas
a ela. Lutero chegou ao ponto de dizer: “O que lhe damos hoje podemos tirar
dele amanhã”. O rito da ordenação não confere nenhum caráter indelével à pessoa
ordenada. É meramente a forma pública pela qual alguém é comissionado mediante
a oração, as Escrituras e a imposição de mãos, a fim de servir à congregação.
Argumentando curiosamente a partir da lei natural, Lutero excluía mulheres,
crianças e pessoas incompetentes do ministério oficial da igreja, embora numa
época de emergência ele pudesse chamá-los a exercer tal ofício, em virtude de
sua parcela no sacerdócio de todos os cristãos.
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