Por: Adriani Milli Rodrigues.
Mestrando em Teologia (UNASP) e em Ciências da Religião (UMESP).
Com certeza os desafios ecológicos do século XXI são drasticamente diferentes, e intensamente mais complexos que os problemas ambientais figurados no cenário do século XVIII. Em outras palavras, o mundo em que John Wesley (1703-1791) viveu representava um contexto bastante distinto do panorama atual.
Evidentemente, a tentativa de “situar Wesley entre os ecologistas é, realmente, um “anacronismo”. Runyon, por exemplo, ressalta que “a ecologia não estava na ordem do dia nos tempos de Wesley”. Com efeito, o próprio termo “ecologia” foi forjado quase cem anos depois de Wesley: em 1886 o zoólogo alemão Ernst Haeckel cunhou o vocábulo alemão ökologie para se referir à relação dos seres vivos com o seu ambiente orgânico ou inorgânico.
O conceito de ecologia oriunda da raiz grega oikos - que significa casa, família, lar ou lugar para viver e alude, de forma geral, à inter-relação entre os organismos e seu ambiente.
Ademais, os terríveis efeitos da produção industrial vistos nos dias de hoje no meio ambiente eram estranhos para a sociedade britânica do século XVIII, que ainda estava experimentando os primórdios da Revolução Industrial. Os londrinos daquela época se queixavam “fortemente da fumaça causada por muitas lareiras a carvão”. Naturalmente, tal reclamação demonstra que eles não tinham idéia dos graves desdobramentos do desenvolvimento industrial do século XXI.
A análise comparativa dessas duas épocas parece contribuir para a conclusão de que o pensamento teológico de Wesley não possui muita relevância para a discussão acerca do tema da responsabilidade ecológica cristã na atualidade. Todavia, será que os questionamentos e reflexões formuladas por Wesley, que visavam primariamente atender as demandas de sua época, não constituem de algum modo uma plataforma teológica útil para pensar os problemas ambientais do século XXI numa perspectiva cristã? A despeito da grande diferença histórica, é possível perceber paralelos importantes entre o contexto dos tempos de Wesley e os desafios atuais?
Segundo a perspectiva adotada neste estudo, as respostas para essas perguntas são positivas, e concordam com Maddox, May e Runyon na afirmação de que o pensamento de John Wesley fornece fundamentos teológicos importantes para uma relevante discussão da temática da responsabilidade ambiental cristã no contexto da crise ecológica atual.
Desse modo, ao apresentar a contribuição teológica de John Wesley para uma ética ambiental cristã, a abordagem deste estudo procurará, inicialmente, situar historicamente o pensamento de Wesley. Para isso é importante apresentar um panorama geral da Inglaterra do século XVIII, marcado pelos primórdios da Revolução Industrial que propiciaram intensos problemas sociais e ambientais, bem como as práticas colonialistas do império inglês exercidas em outras terras.
Em seguida serão sublinhados os principais elementos do pensamento de Wesley, em conexão direta com a doutrina da criação, que buscam oferecer uma reflexão teológica sobre a responsabilidade cristã frente às condições ambientais insatisfatórias de seu tempo, principalmente no que diz respeito ao trato dos animais: o conceito de salvação na perspectiva da nova criação, a noção de imagem política e o papel do ser humano como cuidador e não como conquistador, a responsabilidade para com a natureza e o cuidado dos animais.
Finalmente algumas considerações serão traçadas a respeito da contribuição da teologia de Wesley, bem como suas limitações, na discussão da responsabilidade ecológica cristã do século XXI.
O contexto da teologia de Wesley: a Inglaterra do século XVlll.
Os tempos de Wesley foram marcados por problemas de ordem interna e externa da política inglesa. No primeiro caso se alistam as graves situações de injustiça social aliadas à crescente degradação ambiental e crueldade no trato para com os animais. No segundo caso o avanço da empresa colonial era intensificado, tendo em vista o poderio da Inglaterra no século XVIII, que se estendia às Américas e outras partes do mundo. Em ambos os casos havia uma mola propulsora comum que alavancava tais problemas: a emergente ciência moderna e a tecnologia, que nos tempos de Wesley levaram o país ao limiar da Revolução Industrial.
Assim, a Revolução Industrial contribuía para a ascensão econômica inglesa no cenário mundial à custa de terríveis sequelas sociais - grandes divisões entre ricos e pobres – e ambientais. A emergente prática científica era totalmente insensível ao sofrimento dos animais que eram utilizados em seus experimentos. O resultado direto disso foi a extinção de populações silvestres e o trato cruel dos animais. Sua demanda de energia provocava a destruição de florestas.
Além disso, as recentes indústrias davam os primeiros passos em termos de poluição.
A substituição do carbono vegetal pelo carvão mineral fazia com que a fumaça das fábricas contaminasse severamente o ar. Havia também o uso crescente de produtos químicos por parte das indústrias, que despejavam nos rios seus detritos e resíduos tóxicos. Logo, os centros urbanos industriais se transformaram em espaços sujos, insalubres e perigosos.
Na percepção de May, a crise ambiental que aflige a América Latina apresenta
similaridades com os tempos de Wesley:
Hoje, como no século XVIII, a crise ambiental é estrutural e não se reduz a atitudes pessoais e individuais, como se fosse uma crise de valores ou de pessoas mal intencionadas [...] Para sua sobrevivência e constante expansão – o “crescimento econômico” – requer o uso cada vez mais intenso de recursos naturais.
O reconhecimento da estrita relação entre política econômica e crise ambiental permite perceber o fato de que a exploração ambiental tem como irmã gêmea a exploração social, pois “o sistema que sacrifica os pobres, também sacrifica a natureza.”
É bem verdade que Wesley estava consciente dos primeiros efeitos da Revolução Industrial sobre o meio ambiente. Certamente seus escritos, de algum modo, questionavam tais práticas e buscavam responder teologicamente a essa situação. Contudo, não há em Wesley uma análise econômica da situação que procure criticá-la a partir de uma perspectiva estrutural e política.
Em realidade, através das lentes teológicas, seu diagnóstico é mais profundo: a exploração do meio ambiente é um problema antropológico que se relaciona diretamente com as doutrinas do pecado e da criação.
Criação e Nova Criação na teologia de Wesley
Ao reconhecer o mundo natural como perfeita obra da criação de Deus e, de forma comparativa, observar como ele atualmente está bastante desfigurado, Wesley procura descobrir o propósito divino da criação original. No entanto, esta busca não ocorre por conta de uma mera curiosidade que deseja conhecer como as coisas eram no passado, mas para entender como as coisas serão no futuro. Em outras palavras, o propósito divino da criação original é, em realidade, o propósito divino da nova criação. A erradicação do pecado permite o retorno ao propósito original.
Desse modo, considerando que o pecado se interpõe entre a condição atual e a condição original, Wesley entende que não é possível conhecer o propósito original a partir de nossa condição atual. Por isso, ele elege duas fontes para esse conhecimento: os relatos bíblicos da criação e a profecia bíblica do cumprimento que está por vir. Sua tarefa, portanto, é unir a protologia e a escatologia bíblica. Isso ressalta a necessidade imprescindível da revelação bíblica.
A importância da Natureza para Wesley
Embora indique claramente a primazia da revelação bíblica, Wesley também valorizava o conhecimento proveniente do próprio mundo natural, e demonstrava grande fascínio pela natureza. Em sua extensa obra de filosofia natural - A Survey of the Wisdom of God in the Creation16 (1775) - ele discute minuciosamente sobre a natureza. A obra é composta de cinco partes principais. Na primeira delas, Wesley trata do ser humano: a complexa estrutura de seu corpo, o funcionamento dessa estrutura, suas características sobrenaturais, sua alma e origem. Por sua vez, na segunda parte, ele fala sobre os animais: mamíferos, pássaros, peixes, répteis e insetos. Na terceira parte ele analisa as plantas, minerais e metais, ao passo que na quarta parte sua discussão se concentra nos quatro elementos (terra, fogo, água e ar) e nos meteoros. Finalmente, na última parte Wesley fala sobre o sistema solar e os corpos celestiais. Conforme Runyon destaca, o argumento central que perpassa cada discussão é o de que todas as coisas na natureza contribuem para o equilíbrio ecológico e a ordem criada. Todas elas têm seu propósito, inclusive aquelas aparentemente consideradas insignificantes.
Contudo, além de Wesley discernir no conhecimento oriundo da natureza as noções de desígnio e propósito da criação, ele também “estava convencido de que é possível reconhecer a glória de Deus e, por analogia, alcançar algum discernimento de seus propósitos por intermédio da observação da dinâmica presente no universo”.
O mundo ao redor de nós é o poderoso volume em que Deus tem declarado a si mesmo. Linguagens humanas e caracteres são diferentes em diferentes nações. Os de uma nação não são entendidos pelos outros. Mas o livro da natureza está escrito em caracteres universais, os quais todos os homens podem ler em sua própria linguagem. Ele não consiste de palavras, mas coisas que retratam a perfeição divina.
Certamente ele “tinha consciência das limitações do conhecimento de Deus obtido a partir da natureza. A criação aponta para a existência do Criador, mas pouco desvela sobre quem ele é”. Esse dado indica a limitação da natureza enquanto portadora da revelação de Deus e seus propósitos para com o mundo.
No entanto, não é apenas nesse sentido que a natureza está limitada. Para Wesley “a beleza primordial foi perdida, o solo foi deslocado pelo pecado, a perfeita harmonia da terra, ar, água e fogo foi rompida”. Mas o fato de que “a sinfonia da criação passou a ser tocada com muitas desafinações e com modificações na composição original”
Encontra suas raízes no ser humano, um ser corrompido e corruptor, que “cria um processo e uma rede que corrompe toda a criação.”
Assim, os problemas da degradação da natureza estão diretamente ligados ao problema da degradação humana. Por isso, Wesley entende e projeta a renovação da criação e das criaturas a partir da “renovação da imagem de Deus na humanidade”. O ponto central da compreensão tanto da degradação quanto da restauração da natureza é o tema da “imagem de Deus” no ser humano.
A importância do tema da “Imagem de Deus” para Wesley.
O tema da “Imagem de Deus” é recorrente no âmbito da teologia cristã, desde a patrística. O texto principal dessa discussão é Gênesis 1:26-27, que contém a afirmação de que Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança. Millard Erickson ressalta que, na discussão geral desse tema no seio da teologia cristã, podem ser destacadas três principais interpretações da noção de imagem de Deus no ser humano.
A primeira delas, chamada de visão substantiva ou estrutural, tem sido a posição dominante durante a maior parte da história da teologia. Segundo essa compreensão a imagem de Deus se refere a características, capacidades ou habilidades – que podem incluir aspectos físicos, psicológicos, morais ou espirituais - que distinguem o ser humano de outras criaturas.
No período patrístico, Irineu (c. 130-200 d.C.) fez a distinção entre “imagem” e “semelhança”, que foi seguida por muitos teólogos por algum tempo. De forma geral, em sua visão, a imagem se referia à razão e o livre-arbítrio, ao passo que a semelhança significava algum tipo de dom sobrenatural concedido pela ação do Espírito. Quando Adão caiu em pecado, ele perdeu a semelhança, mas a imagem permaneceu, em algum nível.
A Escolástica Medieval desenvolveu essa distinção de Irineu, apontando que a imagem refletia os atributos naturais de Deus (como as capacidades da razão e da vontade), enquanto que a semelhança se referia às qualidades morais de Deus. Nesse caso, a queda do ser humano representou a perda da semelhança, mas a imagem permaneceu intacta. Essa compreensão foi importante para a emergência do Iluminismo, visto que a permanência intacta da imagem significava a preservação da capacidade racional. Nesse caso, a racionalidade foi vista como a característica distintiva do ser humano em relação aos animais. Os deístas da época de Wesley, por exemplo, identificavam a imagem com a razão.
Outra interpretação da imagem de Deus no ser humano é a perspectiva relacional. Segunda essa visão a imagem não significa algo inerente ou intrínseco ao ser humano. A imagem não representa uma coisa que o ser humano tem, mas algo que ele experimenta: o relacionamento entre o ser humano e Deus, e o relacionamento entre os seres humanos.
Finalmente, a última compreensão da imagem de Deus, descrita por Erickson, é a visão funcional. Nessa concepção, a imagem de Deus no ser humano não significa algo que o ser humano é ou possui (visão estrutural), e também não representa uma experiência que ele vivencia (visão relacional). A imagem de Deus no ser humano se refere a algo que ele faz. De maneira específica essa função ou atividade humana se traduz no exercício do domínio da criação. “Assim como Deus é o Senhor de toda a criação, o homem reflete a imagem de Deus pelo exercício do domínio sobre o resto da criação”. Essa noção é fundamentada, principalmente, no fato de que o texto de Gênesis 1:26-28 conecta a imagem de Deus no ser humano à ordem de que este deveria dominar o resto da criação.
Embora essa abordagem panorâmica da interpretação do tema da imagem de Deus na teologia cristã pareça uma aguda digressão, ou até mesmo uma divagação (tendo em vista que o foco deste estudo é o pensamento de Wesley), a percepção do quadro geral dessas compreensões se torna bastante significativa quando comparado com a abordagem wesleyana deste assunto. De certo modo, todas essas três interpretações estão presentes na compreensão que Wesley tem da imagem de Deus no ser humano.
Wesley concebia a imagem de Deus de forma relacional – a maneira como ele se relaciona com Deus e também vive essa relação com o mundo -, ao invés de enfatizar algo que o ser humano possui. O ser humano recebe o amor de Deus e, então, o reflete para todas as outras pessoas ou criaturas. Portanto, a imagem de Deus no ser humano não é “uma capacidade ou uma posse inerente ao ser humano, mas como um relacionamento vivo propiciado pela graça divina”.
Evidentemente, essa noção relacional de Wesley não se dá na plataforma da filosofia existencial, como é o caso de Brunner e Barth, mas oriunda da tradição dos padres do Oriente (gregos e sírios) que vai até o quinto século da era cristã. Estes exemplificavam a imagem de Deus na humanidade através da metáfora do espelho. O ser humano deveria espelhar Deus em sua própria vida e também ao mundo, tornando-se mediador da graça divina para o mundo.
Nesse sentido, a metáfora do espelho é útil para demonstrar que a imagem não reside no ser humano, mas no modo como o ser humano vive sua relação com Deus e com o mundo.
A partir da compreensão relacional Wesley concebe a imagem de Deus na humanidade em três dimensões: a imagem natural, a imagem moral e a imagem política.
Imagem Natural e Moral
Enquanto a visão relacional da Imagem de Deus no homem pode ser vista, de certo modo, como o pano de fundo geral para a compreensão wesleyana sobre este tema, a visão estrutural pode ser percebida de alguma forma nas descrições que Wesley faz das dimensões natural e moral da imagem de Deus.
A dimensão natural da imagem de Deus na humanidade refere-se às capacidades de entendimento/razão, vontade e liberdade. Com a queda do homem todas elas corrompidas e esmaecidas, mas não totalmente obliteradas. No caso da razão, por exemplo, Wesley entende que a renúncia à esta significa renunciar também à religião, pois a religião e a razão andam juntas, e toda religião irracional é falsa. Mas ele também estabelece claros limites para o papel da razão na religião. Do mesmo modo, vontade e liberdade também foram seriamente corrompidas, mas não totalmente, pois se a vontade não tiver nenhuma liberdade, ela não pode ser responsabilizada por seus atos. Portanto, o julgamento justo de Deus exige certo grau de livre-arbítrio.
Já a dimensão moral da imagem de Deus constitui a principal característica do relacionamento humano com Deus, sendo a mais facilmente distorcida pelo pecado. À luz de sua compreensão relacional, Wesley insere aqui a importância da obediência a Deus e destaca que esta não consiste em simplesmente seguir regras, pois nosso relacionamento é com o Criador, e não com as regras. A obediência permite que a vida humana esteja continuamente aberta à recepção do amor, justiça, misericórdia e verdade que provém de Deus, e, como sua imagem, exercer e transmitir o que foi recebido.
Maddox identifica nas dimensões wesleyanas de imagem natural e imagem moral a diferenciação entre atributos naturais e morais de Deus expresso na tradicional distinção dos termos “imagem” (atributos naturais) e “semelhança” (atributos morais), mas com a matriz mística da ortodoxia oriental: os seres humanos foram “originalmente criados com a capacidade de participar em Deus, e quando participavam, eles incorporavam o caráter moral de Deus e alcançavam a plenitude”.
Imagem Política e Responsabilidade Ecológica
A terceira dimensão da imagem de Deus no ser humano, a imagem política, apresenta um paralelo direto com a visão funcionalista, e representa com certeza o aspecto mais importante do pensamento de Wesley para o tema da responsabilidade ecológica. A imagem política enfatiza a responsabilidade que a humanidade recebeu de cuidar do resto da criação. Através da imagem política o ser humano se constitui como um canal de comunicação entre o Criador e o resto da criação, por meio do qual as bênçãos de Deus fluem para toda a natureza. Então, do ponto de vista da imagem política, “a humanidade é a imagem de Deus na medida em que a benevolência de Deus é refletida nas ações humanas para com o resto da criação”.
Distorções da imagem política na prática da exploração e da conquista
A compreensão wesleyana acerca da responsabilidade humana para com a criação, conforme expressa em Gênesis 1:28, era diametralmente oposta à interpretação de domínio da natureza da expansão do capitalismo e da modernidade. A concepção deísta, vigente nos círculos intelectuais da época de Wesley, negava a presença contínua de Deus no mundo, e entedia o ser humano como senhor e proprietário do mundo natural.
Tal concepção era bastante interessante para a sociedade industrial que despontava, visto que com isso o caminho estava livre para manipular e explorar a natureza de acordo com seus interesses. Contudo, para Wesley, as relações humanas junto ao mundo natural “devem ser modeladas por uma atitude de cuidado e responsabilidade. Como parceiros e parceiras nas obras de Deus, nós devemos defender a vida em todas as suas manifestações e zelar pela integridade da criação”.
May destaca que a compreensão do ser humano como cuidador da natureza, levou Wesley a condenar a exploração colonial das Américas e das Índias, pois nenhum “cuidador” poderia ser um “conquistador”. Tudo o que a humanidade desfruta no mundo é uma dádiva divina. Os seres humanos não são donos de nada. Eles podem desfrutar as dádivas, mas não podem apropriar-se delas, destruí-las ou usá-las de forma contrária aos propósitos de Deus.
Distorções da imagem política na crueldade para com os animais
Em meados do século XVIII a caça de raposas e outros animais silvestres era o grande passatempo dos ricos. Ademais, o povo comum se divertia através das lutas entre animais. A multidão pagava para assistir o sangrento espetáculo da luta entre galos, ou situações em que ursos ou animais silvestres ferozes eram amarrados em estacas e atacados por cães.
Considerando que desde a sua infância Wesley nutriu uma paixão pelos animais, ao ver esse terrível quadro ele se sensibilizou com a difícil situação dos animais. Em seu sermão The great deliverance ele afirma que o lugar dos animais dentro da criação necessita de maior consideração do que lhes tem sido dada:
Nem estão estas meigas e amigáveis criaturas, que ainda reconhecem o domínio [do homem] e são obedientes aos seus comandos, protegidas da violência mais que brutal, do abuso e da agressão de todo tipo. Está o cavalo generoso, que atende às necessidades ou ao prazer de seu mestre com diligência incansável, está o cão fiel, que espera pelo aceno ou olhar
[de seu mestre], livre deste [abuso]? Que paga recebem estas pobres criaturas pelo seu serviço longo e fiel? E que sofrem por parte deste homem tirano! O leão, o tigre ou o tubarão lhes infligem dor por mera necessidade, de modo a prolongar sua própria vida, e acabam uma só vez com o seu sofrimento. Mas o tubarão humano, sem qualquer necessidade, os atormenta por pura vontade, e talvez prolongue seu sofrimento [...]
Em seu sermão acerca da educação dos filhos, Wesley também fala da importância de os pais ensinarem os filhos a cuidarem dos animais:
Os pais verdadeiramente afetuosos não tolerarão [em seus filhos] qualquer tipo de desumanidade. [...] Não admitirão que roubem ninhos de pássaros e, menos ainda, que matem qualquer coisa sem necessidade; nem mesmo as cobras, que são tão inocentes quanto as minhocas, ou sapos que, não obstante sua feiúra e o nome pelo qual são designados, já se provou inúmeras vezes serem tão inofensivos quanto moscas. Que eles estendam na sua medida a regra de fazer a todo animal aquilo que gostariam que lhes fizessem.
Com efeito, Coob ressalta a importância notável da preocupação de Wesley para com os animais em contraste com o silêncio da teologia cristã e da prática eclesiástica em geral:
atualmente é difícil encontrar um ensino cristão sobre a responsabilidade para com os animais. O Concílio Mundial das Igrejas tem falado com beleza acerca da integridade da criação, mas não tem dito nada acerca do sofrimento que seres humanos infligem sobre [... os] animais. [...] apenas recentemente algumas denominações deram atenção a esse assunto. Mas ainda são raros os sermões em congregações locais que lidam com a relação das pessoas junto a outras criaturas.
A Nova Criação
A chave indispensável da soteriologia de Wesley é a renovação da imagem de Deus na humanidade. É aqui que começa a renovação da criação. Desse modo, Wesley se distanciou da identificação da salvação como a justificação apenas, e insistiu no ponto de que a salvação “não se completa antes da renovação daquela vocação original para a qual a humanidade foi criada: viver a imagem de Deus no mundo”.
Embora não negasse a literalidade do céu e da salvação futura que o próprio Deus trará, Wesley também não entendia o reino de Deus como algo puramente futuro.
Portanto, para ele, a salvação não se referente apenas a um estado futuro, mas também a uma qualidade da vida presente. Até certo ponto, podemos experimentar o propósito divino para nós como as evidências iniciais do tempo por vir. Nesse sentido a santificação - isto é, a renovação gradual da imagem de Deus no ser humano - manifesta na vida das pessoas, constituiria um testemunho concreto do propósito de Deus na criação e de sua promessa de renovar o céu e a terra.
Por isso, para Wesley a santificação não pode se divorciar do cuidado do meio ambiente. Se santificação envolve uma nova criação da imagem de Deus no ser humano, a renovação da imagem política, que representa o cuidado humano da criação, também está incluída. Mas esta restauração da imagem política é impossível sem a restauração simultânea da imagem moral. Tal compreensão é fundamental para o reconhecimento de que o cuidado humano da natureza não envolve apenas uma mudança de atitude humana, mas um novo relacionamento com Deus, pois não pode haver “qualquer restauração da verdadeira imagem sem o Deus que ela retrata”.
Considerações Finais
O estudo da teologia de John Wesley revela aspectos de seu pensamento que não apresentam direta relação com o mundo atual, mas aponta dimensões muito úteis para a discussão da responsabilidade ecológica cristã no século XXI, a despeito da grande diferença no contexto histórico.
No ponto de vista de Josgrilberg, por exemplo, o quadro ecológico atual é intensamente diferenciado dos tempos de Wesley. Ele não percebeu detidamente a “abordagem sistêmica das transformações da sociedade industrial e muito menos a evolução do capitalismo financeiro e força da economia de mercado”. Além disso, sua compreensão da natureza, em termos de pesquisas científicas, segue os parâmetros do século XVII.
Contudo, embora tenhamos uma compreensão da natureza com séculos de vantagem em termos de avanço científico em relação a Wesley, os atuais ganhos da ciência andam de mãos dadas com as notáveis perdas na capacidade de reflexão religiosa e ética, e atitude cristã.
Deve-se destacar também que Wesley conseguiu, mesmo que de forma incipiente, perceber a relação da exploração da natureza e a exploração dos povos em sua constatação da deturpação da imagem política exemplificada na atitude exploratória e colonizadora, tanto na América quanto na Índia, da Inglaterra de seu tempo. Na teologia contemporânea há uma reflexão mais elaborada da relação entre a exploração ecológica e a exploração dos povos, como base do projeto da modernidade, nos trabalhos de Boff e Moltmann. Nesse sentido, de certo modo, nossos tempos não são muito diferentes dos de Wesley, pois “no fundo, a crise ambiental é a manifestação de uma conquista continuada ‟, tanto da natureza como dos povos humanos”. No entanto, deve-se destacar que Wesley se afastou do risco que estes e outros teólogos contemporâneos incorrem, quando utilizam uma abordagem que tende a reduzir o discurso teológico a uma dimensão ética das práticas políticas e econômicas, abandonando a perspectiva cósmica e transcendente da escatologia bíblica.
Wesley conseguiu evitar tal abordagem quando assumiu que os problemas ambientais não se restringem aos problemas políticos e econômicos, mas remetem ao problema básico da atuação do pecado na humanidade, cuja solução se encontra na dependência de uma intervenção direta de Deus.
Entretanto, ao se reportar ao problema espiritual do pecado, diferente do pensamento cristão geral de sua época, Wesley não caiu numa perspectiva meramente dualista de matriz platônica grega. Segundo essa perspectiva a redenção se limitaria a uma existência espiritual abstrata no céu, no além. Isso tende a produzir uma desvalorização e desconsideração para com os aspectos concretos e físicos da realidade atual (inclusive o cuidado do meio ambiente enquanto criação de Deus) em função de uma ênfase unilateral do aspecto espiritual. A partir de uma consciência não dualista, Wesley conseguiu desenvolver uma visão muito próxima do conceito bíblico de redenção, que inclui a concretude da vida em termos da nova criação do céu e da terra, uma transformação completa da realidade do mundo atual. Além disso, ele pôde entender a graça como um elemento que não apenas gera salvação espiritual, mas produz nos crentes uma postura responsável para com a vida em todos os seus aspectos – o processo de santificação, que inclui a dimensão da responsabilidade ecológica.
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