Por Pr. Dr. Metodista José Carlos de Souza
Não é raro escutarmos afirmações como essa que escolhemos como título para essa breve reflexão. Fortemente influenciados pela tradição antiintelectualista do avivalismo, costumamos desprezar qualquer esforço no sentido de elucidar a fé como totalmente inútil, quando não o denunciamos como perigosa especulação a nos desviar da herança uma vez entregue aos santos. Desta maneira, cultivamos um dualismo que põe em campos totalmente opostos o saber teológico e a prática pastoral. Preferimos nos apresentar mil vezes como homens e mulheres de ação, voltados, de corpo e alma, para o empenho missionário, do que como pessoas dedicadas ao estudo e à reflexão. Queremos, antes, ser reconhecidos por nossa piedade do que por nossa habilidade racional.
Por
isso, muitos repetem, com orgulho indisfarçável, que mantêm distância das
“artimanhas” do pensamento teológico, pois estão empenhados nas tarefas pastorais.
Lembro-me de um caso curioso, senão melancólico, de um estudante que, mal
obteve o grau de Bacharel em Teologia, se pôs a vender os livros que
penosamente adquirira, alegando que, doravante, precisaria de apenas 66 deles.
Não lhe ocorreu, mas ele poderia invocar o próprio Wesley para justificar o seu
ato. Afinal, em mais de uma ocasião, o fundador do metodismo declarou que era
homo unius libri, “homem de um só livro”. Além do mais, talvez nenhum outro
líder cristão, na sua época, tenha insistido tanto, quanto Wesley o fez, na
busca da santidade e da perfeição cristã. Nesse contexto, proclamar fidelidade
às Escrituras seria, sem dúvida, um gesto não somente esperado, mas valorizado
grandemente. Também é bem conhecida a tríplice questão com que se costuma
resumir o exame aplicado por Wesley aos pregadores: “Tens a Graça? (...) Tens
os dons? (...) Tens os frutos?” Aparentemente, como se vê, nenhuma pergunta
sobre as qualificações intelectuais dos pregadores é formulada.
Some-se
a esses fatores, o fato de que John Wesley geralmente é lembrado como
evangelista, organizador, reformador, educador, conselheiro, guia religioso,
etc., porém, quase nunca como teólogo. Há mesmo quem assinale que a grande
contribuição de Wesley para a história do cristianismo situa-se fora dos
limites da teologia. Ele próprio não chegou a declarar que “colocar as marcas
de um metodista em suas palavras ou mesmo em opiniões de qualquer sorte” era
“um grande erro”? De fato, argumenta-se, a sua ênfase recaía sobre a vida
cristã e o crescimento espiritual e não tanto sobre a confissão da reta
doutrina.
Convém,
entretanto, não tirarmos conclusões apressadas. Não posso, por exemplo, deixar
de dar razão a Paul Tillich quando, na introdução de sua História do Pensamento
Cristão, observou: “Não há existência humana sem pensamento. O emocionalismo
que prevalece na religião não é mais, e sim menos, do que pensamento e reduz a
religião ao nível de uma experiência subumana da realidade”. Nesse sentido em
particular, tornar-se-ia incompreensível que um movimento da importância do
metodismo, considerando a influência que exerceu e exerce até hoje, pudesse
subsistir por tão longo tempo sem uma sólida elaboração teológica.
É
certo que Wesley não escreveu extensos manuais ou minuciosos tratados sistemáticos
sobre os grandes temas cristãos. Entretanto, a sua teologia, expressa em
sermões, hinos, panfletos, diários, pequenas obras e numerosos escritos, além
de perfeitamente integrada à vida e missão do povo chamado metodista, buscava
responder aos anseios mais profundos da sociedade inglesa, então, mergulhada
num processo de rápidas transformações. Nessa linha de raciocínio, Albert C.
Outler, um dos mais conhecidos historiadores do metodismo, classifica John
Wesley como um teólogo da cultura “que encontrou métodos eficientes para
comunicar o evangelho a audiências massivas, e se preocupou um pouco com a
complexidade de suas fontes e com a significação cultural de suas mensagens
evangelísticas”.
A
bem da verdade, antes mesmo que as Sociedades Unidas se estruturassem, Wesley
já havia se despertado para os perigos da indiferença em relação à teologia.
Aliás, divergências sérias o levaram a se afastar progressivamente quer dos
morávios, sob cujo influxo sentira o seu “coração aquecido”, quer de
Whitefield, embora devotasse a ambos sincera amizade. Nem o quietismo e a
rejeição dos meios de graça, por parte dos primeiros, nem as convicções
predestinacionistas do segundo, eram compatíveis com sua visão teológica.
Mais
tarde, à frente do movimento, Wesley se convenceu de que a pregação não poderia
se restringir a dar testemunhos da experiência pessoal, como usualmente
acontecia nas classes metodistas, mas envolvia o empenho para correlacionar
essas experiências com a mensagem bíblica, no contexto de uma clara interpretação
teológica. Tais conclusões conduziram-no a ocupar-se, de forma crescente, na
preparação dos pregadores leigos. Grande parte de suas publicações tinham como
endereço certo esse ministério, com destaque para os volumes de Sermões e a
Biblioteca Cristã, um ambicioso projeto editorial que pretendia publicar
extratos e resumos das melhores obras teológicas existentes em língua inglesa,
num total de 50 volumes. No exame periódico a que eram submetidos os
pregadores, a pergunta sobre os hábitos de leitura era sempre renovada. A
propósito, na conferência de 1758, Wesley não escondeu a sua decepção diante do
compromisso assumido, mas não inteiramente cumprido, de ler todas as “nossas
obras” (na ocasião, 15 volumes de panfletos), trazendo para o diálogo comentários
que julgassem oportunos. A sua observação fala por si mesma: “Não estão muitos
de nós ainda carecendo de seriedade?”
É
bom lembrar que Wesley era bastante severo nesse aspecto. Ele exigia que os
pregadores empregassem toda a manhã ou, pelo menos, 5 horas diárias na leitura
de bons livros. Havia quem resistisse, alegando não ter esse hábito, não
possuir livros ou simplesmente reivindicando atenção exclusiva à Bíblia. Com
firmeza e refinada ironia, ele contestava todos esses argumentos. Aqueles que
terminantemente se recusavam a ler eram aconselhados a retornarem às suas
antigas ocupações. Para outros, Wesley se dispunha a doar livros até o valor de
5 libras. Aos que se desculpavam apelando para o biblicismo, ele recordava o
exemplo de Paulo que, na prisão e próximo do martírio, solicitava a Timóteo
para trazer “os livros, especialmente os pergaminhos” (2Tm 4.13). Se o apóstolo
agia desse modo, quanto mais os pregadores deveriam fazê-lo. O contrário seria
arrogante fanatismo: “Se não precisardes de nenhum livro senão da Bíblia, já
estais mais adiantados do que São Paulo”. Então, Wesley trazia à memória o
trágico exemplo de George Bell: “... ele agora não lê a Bíblia nem qualquer
outra coisa”. Essa insistência tinha, na realidade, uma intenção prática. Sem o
cultivo da leitura, as pregações se tornariam monótonas, superficiais e
repetitivas. Wesley chegava, até mesmo, a duvidar que alguém pudesse alcançar a
maturidade cristã, negligenciando esse meio como caminho eficaz para o
crescimento na fé.
A
modo de conclusão, cabe dizer que a proposta encontrada num verso de Carlos
Wesley - “Unir os dois separados há tanto tempo, / Conhecimento e piedade
vital” - transformou-se, na concepção wesleyana, num verdadeiro programa para o
exercício do ministério pastoral e num desafio extremamente urgente na hora
atual. Como membro do Conselho Diretor da Faculdade de Teologia, o Rev. William
Schisler Filho, sempre retomava a necessidade de nós, do corpo docente,
incentivarmos a vida devocional na comunidade acadêmica, em especial junto dos
futuros pastores e pastoras, porém, com idêntico entusiasmo, se alegrava todas
as vezes que uma conquista, no campo da produção teológica, era alcançada. Com
certeza, ele intuiu, ou melhor, vivenciou as preocupações de Wesley relativas à
vocação pastoral. Nosso reconhecimento e gratidão por mais essa lição recebida
através de seu fecundo ministério.
Texto publicado em: “Sou pastor... e não teólogo!” – Ciência e
piedade na prática pastoral segundo John Wesley. In: Mosaico – Apoio Pastoral.
São Bernardo do Campo: Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Centro de
Teologia e Filosofia da UMESP, Ano V, no 2, Maio /Junho de 1997, p. 6-7
[Pequenas alterações em setembro/2011).
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