Durante os últimos 40 anos,
o uso de uma linguagem tradicional para retratar o gênero de Deus
tem recebido críticas ferrenhas. Embora teólogas feministas
discordem sobre qual linguagem usar para substituir a forma
tradicional, elas são unânimes ao defender a eliminação das
palavras masculinas para definir Deus do vocabulário cristão,
especialmente a palavra Pai. Elas argumentam que, para que a Igreja
seja mais abrangente, a linguagem centrada no homem deve ser
substituída por uma que inclua tanto o sexo masculino quanto o
feminino. Além disso, uma vez que as palavras humanas não podem
retratar adequadamente a plenitude de Deus, nenhuma caracterização
jamais será suficiente. Assim, o Senhor poderia ser tratado como pai
ou mãe, a fim de realçar sua natureza multifacetada.
Por trás
dessa visão, está a crença de que termos como pai e mãe são
meras caracterizações humanas do divino, moldadas por contextos
culturais específicos. As imagens bíblicas de Deus,
predominantemente masculinas, refletem uma sociedade patriarcal
antiga. Como consequência disso, segundo os críticos, a religião
bíblica teria absorvido valores patriarcais, que seriam, por sua
vez, usados para justificar crenças e instituições que prejudicam
ou subjugam as mulheres. A Teologia, portanto, deveria ser
reconstruída de modo a produzir uma religião válida para as
mulheres, com base em sua própria experiência. A busca por uma
linguagem de gênero inclusiva tem sido uma preocupação para muitos
protestantes e católicos liberais durante décadas – e mesmo
crentes de outras linhas confessionais, como os avivados, também
fazem concessões para acomodar essas preocupações. Mas, antes de
fazer isso, é preciso reexaminar as razões para o uso de palavras
masculinas para se referir a Deus nas Escrituras e em toda a tradição
cristã.
Ao longo de todas as Escrituras, são utilizadas imagens
femininas para descrever a natureza compassiva e amorosa de Deus.
Exemplos disso são as frequentes referências a Deus protegendo e
consolando seus filhos – caso de Isaías 66.12-13 e Oseias 11.1-4,
por exemplo. Mas é importante observar que Deus nunca é tratado
como mãe; e este é um fenômeno único em comparação com as
culturas existentes nos tempos dos autores bíblicos originais. A
maior parte das sociedades antigas do Oriente tinha uma deusa como
figura de culto principal, ou ao menos como divindade complementar a
um deus do sexo masculino – assim eram Astarote, em Canaã; Ísis,
no Egito; e Tiamat para os babilônios. Se o patriarcado é
responsável pela retratação de Deus pelas culturas como figura
masculina, então a adoração a uma deusa deveria retratar uma
sociedade matriarcal, na qual as mulheres receberiam um status
superior ou igual ao dos homens. Mas não é isso o que acontece: até
hoje, muitas sociedades devotas a deusas continuam oprimindo as
mulheres. O culto à deusa Kali, no Hinduísmo, por exemplo, nunca
resultou em um melhor tratamento às mulheres, nem mesmo por parte de
seus devotos.
Até mesmo Israel sucumbiu a uma ideia de Deus
contrária à sua disposição natural. Entregues a si mesmos, os
israelitas acabariam adorando a Baal e Astarote, divindades cananeias
da fertilidade. Os profetas de Israel denunciaram tão ferozmente a
idolatria justamente porque seu povo era constantemente tentado a se
entregar a ela. Mas a visão dos judeus sobre a paternidade de Deus
contrariou uma tendência muito comum no mundo antigo. Por isso, essa
forma de designação não poderia ter sido uma invenção israelita,
e sim, resultado de uma longa história de vida sob a revelação de
Deus. A continuidade dessa narrativa por parte da Igreja é que
levaria, eventualmente, à doutrina exclusivamente cristã de Deus
como Pai, Filho e Espírito Santo.
RELAÇÃO ÚNICA
No
Novo Testamento, a paternidade de Deus transmite duas ideias
distintas. Em primeiro lugar, ela refere-se essencialmente à relação
interna da Trindade. O primeiro artigo do Credo dos Apóstolos coloca
a questão da seguinte maneira: "Creio em Deus, Pai
Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, e em Jesus Cristo, seu
único Filho, nosso Senhor". Mesmo nos escritos de Paulo, o
tratamento é essencialmente masculino ("Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo") e tornou-se comum. Deus é, em primeiro
lugar, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Tal tratamento não é uma
invenção de líderes da Igreja; ele vem diretamente de Cristo, que
se refere a Deus como "Pai". Ao fazer isso, Jesus revela
uma relação única entre Pai e Filho, característica que constitui
o início da doutrina trinitária.
Jesus ensinou seus discípulos
a chamarem Deus de "nosso Pai celestial". Portanto, o
relacionamento amoroso que ele tem com o Pai, desde a eternidade,
agora se estende àqueles que foram adotados à família de Deus,
conforme Romano 8.15. A relação entre o Pai e o Filho é a relação
mais pessoal e íntima, marcada pelo amor recíproco e pelo respeito;
assim, o termo "Pai" busca destacar a natureza extremamente
pessoal e amorosa de Deus.
Afirmar que a presença de metáforas
masculinas para retratar a Deus exclui as mulheres, como determinadas
abordagens teológicas afirmam, simplesmente não condiz com a
maneira como as Escrituras utilizam tais metáforas. Essas metáforas
de Deus nem sempre transmitem qualidades exclusivamente masculinas. O
texto de Isaías 54.5-7, por exemplo, refere-se a Deus como o marido
que, com "profunda compaixão" (uma qualidade de
estereótipo feminino) chamou Israel de volta para si. O termo pai,
portanto, não exclui qualidades femininas, mas sim a ideia de uma
divindade distante e impessoal, que é precisamente a imagem dos
seres supremos ainda vistos em muitas religiões primitivas.
Em
segundo lugar, a metáfora de pai aponta para Deus como o Criador "do
qual toda família no céu e na terra toma o nome" (Efésios
3.15). A palavra "pai" abrange duas características
aparentemente contrastantes: o amor de Deus por suas criaturas e seu
domínio sobre toda a criação. Aqui, novamente, vemos a diferença
entre Israel e as culturas do Oriente antigo. Na fé judaico-cristã,
Deus, o Pai, criou o mundo como algo separado de si mesmo, ao passo
que, nas antigas sociedades orientais, as imagens metafóricas
ilustram a deusa-mãe dando à luz ao mundo (o que o torna uma
extensão do corpo da divindade). Logo, chamar Deus de mãe
enfraquece a doutrina cristã da criação, implicando que Deus e o
mundo são feitos do mesmo material e praticamente indistinguíveis.
Precisamos, portanto, do Pai, a fim de chegarmos a uma doutrina
correta da criação.
PATERNIDADE
DIVINA
Por
outro lado, se a paternidade implica um domínio sobre a criação e
também um amor íntimo e pessoal, termos de gênero neutro não
poderiam comunicar as mesmas ideias? Para responder a essa pergunta,
precisamos entender a natureza da história cristã. Não se trata de
uma mera ilustração. Não é apenas um exemplo de um princípio ou
valor universal mais básico, de forma que essa história se torne
dispensável uma vez que esse princípio seja compreendido. Pelo
contrário, a história cristã é, na verdade, o que forma a nossa
identidade cristã. Parafraseando o teólogo George Lindbeck,
cristãos são pessoas que estão absorvidas na história cristã –
e algo central nessa história é a identidade trinitária de Deus
como Pai de nosso Senhor Jesus.
O termo Trindade é simplesmente
um atalho para a história cristã de Deus o Pai, que enviou o seu
Filho Jesus Cristo e nos deu o seu Espírito Santo. Quem é o Deus
que os cristãos encontram na adoração? Ele é Pai, Filho e
Espírito Santo. De acordo com o teólogo luterano Robert Jenson,
Pai, Filho e Espírito Santo são expressões que constituem o nome
próprio de Deus. A relação com o Deus trino é que faz a
experiência cristã verdadeiramente cristã. Apenas usar o nome de
Deus, mesmo que com muitos qualificadores (compassivo,
misericordioso, amoroso, todo-poderoso, e assim por diante), não é
suficiente para distinguir o Deus da revelação cristã de outras
formas de fé monoteísta. Portanto, se deixarmos de fora a natureza
de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, corremos o risco de
transformar a história cristã em uma outra história.
Enquanto
cristãos de alguns círculos progressistas estão tentando minimizar
o nome de Deus como Pai, os muçulmanos, ironicamente, entendem
melhor o que está em jogo. Isso ficou claro na recente polêmica
sobre Alá ocorrida na Malásia. Alguns muçulmanos tentaram proibir
cristãos de traduzirem a palavra Deus como Alá, na Bíblia malaia,
alegando que isso iria confundir os fiéis muçulmanos mais simples.
Essa atitude pode parecer ridícula, mas por trás de tal preocupação
existe uma afirmação teológica válida. Apesar de Alá ser um nome
genérico (o equivalente árabe do hebraico El), para os muçulmanos
ele adquiriu, com o tempo, status de um nome próprio. Como tal,
carrega uma carga teológica diferente do "Alá" entendido
por judeus e cristãos. Desta forma, Alá é identificado de maneira
única com o Islã, e não com o Judaísmo ou o Cristianismo.
Os
cristãos fazem uma afirmação semelhante quando dizem que a
designação Pai, Filho e Espírito Santo é única e própria do
Deus a quem adoram. Ao utilizar esse nome divino em sua liturgia, a
Igreja está dizendo que essa história, e nenhuma outra, cria e
molda sua identidade única como povo de Jesus Cristo. Um nome
genérico, mesmo com muitos adjetivos descritivos, não distingue
adequadamente a identidade cristã da muçulmana. Tanto judeus quanto
maometanos poderiam muito bem dizer que adoram a um Deus que é
misericordioso, compassivo, santo, e assim por diante. Os adjetivos
podem ser multiplicados infinitamente, mas eles não somam em nada o
nome da Trindade. Os muçulmanos podem até reconhecer um
relacionamento especial ao identificarem Jesus como profeta de Deus;
mas só a Igreja cristã pode confessar a adoração ao Pai do nosso
Senhor Jesus Cristo. Quando a paternidade divina é eliminada, a
Igreja perde sua identidade diferenciada.
VAZIO
O
abandono do substantivo "pai" em referência a Deus,
portanto, deixa um vazio no coração da história cristã. E esse
abandono traz consequências para os rituais de adoração pública
que, em muitas tradições da Igreja, costumam ensinar os crentes a
entenderem essa história e os convidam para participar da mesma.
Esses rituais, muitas vezes, incluem a recitação, por parte de
todos os presentes, de certos credos ou leituras comuns. Mas, sem a
linguagem da paternidade, as recitações públicas não podem mais
valer-se de nomes divinos que justapõem dois ou mais termos
paradoxais, como "Pai Todo-Poderoso". Derivado do Credo dos
Apóstolos, esse termo é utilizado na doxologia conclusiva da oração
da Eucaristia da Igreja Católica: "Por meio dele, com ele e
nele, na unidade do Espírito Santo, toda honra e glória é tua, Pai
todo-poderoso, para todo o sempre". Já o
Anglican Alternative Service Book
(1980) se dirige a Deus como "Todo-poderoso, nosso Pai
celestial", e suas orações eucarísticas invocam um "Pai
santo, rei celeste, todo-poderoso e eterno Deus".
Tais
justaposições, como diz o estudioso Gordon Lathrop, revelam o
mistério de Deus como poderoso, mas, ao mesmo tempo, amoroso, santo
e íntimo de seus seguidores. Isso não significa que Deus é às
vezes um, às vezes outro; mas que ambos o são ao mesmo tempo. Em
contraste, as liturgias modernas tendem a dirigir-se ao Senhor ou
como "Deus todo-poderoso", ou como "Deus
misericordioso", mas raramente como as duas coisas. Quando tais
justaposições se tornam uma raridade, a adoração perde o seu
sentido de mistério divino – e nós começamos a ter a sensação
de que Deus ou é muito distante ou muito bom.
Outra estratégia
para a eliminação de uma "linguagem sexista" é
simplesmente evitar o uso de pronomes masculinos para Deus. O
problema, no entanto, é que se tem de recorrer à repetição da
palavra "Deus" diversas vezes, ou então buscar
alternativas, geralmente pronominais, para usar no lugar de "ele
mesmo", ou "ele", ou "seu". Até mesmo
alguns protestantes conservadores estão começando a aceitar essa
inovação. Mas, evitar o uso de pronomes pessoais para Deus minimiza
involuntariamente a sua natureza pessoal. Isso pode não parecer uma
grande concessão no Ocidente, onde um discurso cristão ainda é
assumido. Por aqui, quando Deus é mencionado, as pessoas geralmente
assumem que ele é o Deus cristão. Contudo, na Ásia, onde há
"muitos deuses e muitos senhores" (conforme I Coríntios
8.5) e onde a realidade suprema pode não ser pessoal, nós
precisamos falar de Deus em termos pessoais. Não fazê-lo, por medo
de ofender outras consciências, é simplesmente desastroso.
Logo,
os cristãos têm boas razões para insistir em tratar a Deus como
Pai, sobretudo na liturgia, onde a história cristã é refeita.
"Pai" não é uma palavra culturalmente condicionada, e sim
o nome próprio de Deus, dado por revelação divina. É assim que
ele é identificado e nomeado em relação ao seu Filho. O que está
em jogo não é uma questão de estilo linguístico ou uma abordagem
politicamente correta, mas a identidade divina trinitária, que
afeta, inevitavelmente, a identidade da Igreja. Jogar esse jogo da
linguagem inclusiva traz um alto custo teológico que supera, de
longe, qualquer ganho que pudesse existir.
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