31/03/2014

Não é mera questão de gênero.




Por Simon Chan é professor de Teologia Sistemática na Trinity Theological College, em Cingapura, e autor de Liturgical Theology: The Church as Worshiping Community (InterVarsity Press). Publicado originalmente na revista Cristianismo Hoje.

Durante os últimos 40 anos, o uso de uma linguagem tradicional para retratar o gênero de Deus tem recebido críticas ferrenhas. Embora teólogas feministas discordem sobre qual linguagem usar para substituir a forma tradicional, elas são unânimes ao defender a eliminação das palavras masculinas para definir Deus do vocabulário cristão, especialmente a palavra Pai. Elas argumentam que, para que a Igreja seja mais abrangente, a linguagem centrada no homem deve ser substituída por uma que inclua tanto o sexo masculino quanto o feminino. Além disso, uma vez que as palavras humanas não podem retratar adequadamente a plenitude de Deus, nenhuma caracterização jamais será suficiente. Assim, o Senhor poderia ser tratado como pai ou mãe, a fim de realçar sua natureza multifacetada.



Por trás dessa visão, está a crença de que termos como pai e mãe são meras caracterizações humanas do divino, moldadas por contextos culturais específicos. As imagens bíblicas de Deus, predominantemente masculinas, refletem uma sociedade patriarcal antiga. Como consequência disso, segundo os críticos, a religião bíblica teria absorvido valores patriarcais, que seriam, por sua vez, usados para justificar crenças e instituições que prejudicam ou subjugam as mulheres. A Teologia, portanto, deveria ser reconstruída de modo a produzir uma religião válida para as mulheres, com base em sua própria experiência. A busca por uma linguagem de gênero inclusiva tem sido uma preocupação para muitos protestantes e católicos liberais durante décadas – e mesmo crentes de outras linhas confessionais, como os avivados, também fazem concessões para acomodar essas preocupações. Mas, antes de fazer isso, é preciso reexaminar as razões para o uso de palavras masculinas para se referir a Deus nas Escrituras e em toda a tradição cristã.

Ao longo de todas as Escrituras, são utilizadas imagens femininas para descrever a natureza compassiva e amorosa de Deus. Exemplos disso são as frequentes referências a Deus protegendo e consolando seus filhos – caso de Isaías 66.12-13 e Oseias 11.1-4, por exemplo. Mas é importante observar que Deus nunca é tratado como mãe; e este é um fenômeno único em comparação com as culturas existentes nos tempos dos autores bíblicos originais. A maior parte das sociedades antigas do Oriente tinha uma deusa como figura de culto principal, ou ao menos como divindade complementar a um deus do sexo masculino – assim eram Astarote, em Canaã; Ísis, no Egito; e Tiamat para os babilônios. Se o patriarcado é responsável pela retratação de Deus pelas culturas como figura masculina, então a adoração a uma deusa deveria retratar uma sociedade matriarcal, na qual as mulheres receberiam um status superior ou igual ao dos homens. Mas não é isso o que acontece: até hoje, muitas sociedades devotas a deusas continuam oprimindo as mulheres. O culto à deusa Kali, no Hinduísmo, por exemplo, nunca resultou em um melhor tratamento às mulheres, nem mesmo por parte de seus devotos.
Até mesmo Israel sucumbiu a uma ideia de Deus contrária à sua disposição natural. Entregues a si mesmos, os israelitas acabariam adorando a Baal e Astarote, divindades cananeias da fertilidade. Os profetas de Israel denunciaram tão ferozmente a idolatria justamente porque seu povo era constantemente tentado a se entregar a ela. Mas a visão dos judeus sobre a paternidade de Deus contrariou uma tendência muito comum no mundo antigo. Por isso, essa forma de designação não poderia ter sido uma invenção israelita, e sim, resultado de uma longa história de vida sob a revelação de Deus. A continuidade dessa narrativa por parte da Igreja é que levaria, eventualmente, à doutrina exclusivamente cristã de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo.


RELAÇÃO ÚNICA

No Novo Testamento, a paternidade de Deus transmite duas ideias distintas. Em primeiro lugar, ela refere-se essencialmente à relação interna da Trindade. O primeiro artigo do Credo dos Apóstolos coloca a questão da seguinte maneira: "Creio em Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor". Mesmo nos escritos de Paulo, o tratamento é essencialmente masculino ("Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo") e tornou-se comum. Deus é, em primeiro lugar, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Tal tratamento não é uma invenção de líderes da Igreja; ele vem diretamente de Cristo, que se refere a Deus como "Pai". Ao fazer isso, Jesus revela uma relação única entre Pai e Filho, característica que constitui o início da doutrina trinitária.
Jesus ensinou seus discípulos a chamarem Deus de "nosso Pai celestial". Portanto, o relacionamento amoroso que ele tem com o Pai, desde a eternidade, agora se estende àqueles que foram adotados à família de Deus, conforme Romano 8.15. A relação entre o Pai e o Filho é a relação mais pessoal e íntima, marcada pelo amor recíproco e pelo respeito; assim, o termo "Pai" busca destacar a natureza extremamente pessoal e amorosa de Deus.
Afirmar que a presença de metáforas masculinas para retratar a Deus exclui as mulheres, como determinadas abordagens teológicas afirmam, simplesmente não condiz com a maneira como as Escrituras utilizam tais metáforas. Essas metáforas de Deus nem sempre transmitem qualidades exclusivamente masculinas. O texto de Isaías 54.5-7, por exemplo, refere-se a Deus como o marido que, com "profunda compaixão" (uma qualidade de estereótipo feminino) chamou Israel de volta para si. O termo pai, portanto, não exclui qualidades femininas, mas sim a ideia de uma divindade distante e impessoal, que é precisamente a imagem dos seres supremos ainda vistos em muitas religiões primitivas.
Em segundo lugar, a metáfora de pai aponta para Deus como o Criador "do qual toda família no céu e na terra toma o nome" (Efésios 3.15). A palavra "pai" abrange duas características aparentemente contrastantes: o amor de Deus por suas criaturas e seu domínio sobre toda a criação. Aqui, novamente, vemos a diferença entre Israel e as culturas do Oriente antigo. Na fé judaico-cristã, Deus, o Pai, criou o mundo como algo separado de si mesmo, ao passo que, nas antigas sociedades orientais, as imagens metafóricas ilustram a deusa-mãe dando à luz ao mundo (o que o torna uma extensão do corpo da divindade). Logo, chamar Deus de mãe enfraquece a doutrina cristã da criação, implicando que Deus e o mundo são feitos do mesmo material e praticamente indistinguíveis. Precisamos, portanto, do Pai, a fim de chegarmos a uma doutrina correta da criação.


PATERNIDADE DIVINA

Por outro lado, se a paternidade implica um domínio sobre a criação e também um amor íntimo e pessoal, termos de gênero neutro não poderiam comunicar as mesmas ideias? Para responder a essa pergunta, precisamos entender a natureza da história cristã. Não se trata de uma mera ilustração. Não é apenas um exemplo de um princípio ou valor universal mais básico, de forma que essa história se torne dispensável uma vez que esse princípio seja compreendido. Pelo contrário, a história cristã é, na verdade, o que forma a nossa identidade cristã. Parafraseando o teólogo George Lindbeck, cristãos são pessoas que estão absorvidas na história cristã – e algo central nessa história é a identidade trinitária de Deus como Pai de nosso Senhor Jesus.
O termo Trindade é simplesmente um atalho para a história cristã de Deus o Pai, que enviou o seu Filho Jesus Cristo e nos deu o seu Espírito Santo. Quem é o Deus que os cristãos encontram na adoração? Ele é Pai, Filho e Espírito Santo. De acordo com o teólogo luterano Robert Jenson, Pai, Filho e Espírito Santo são expressões que constituem o nome próprio de Deus. A relação com o Deus trino é que faz a experiência cristã verdadeiramente cristã. Apenas usar o nome de Deus, mesmo que com muitos qualificadores (compassivo, misericordioso, amoroso, todo-poderoso, e assim por diante), não é suficiente para distinguir o Deus da revelação cristã de outras formas de fé monoteísta. Portanto, se deixarmos de fora a natureza de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, corremos o risco de transformar a história cristã em uma outra história.
Enquanto cristãos de alguns círculos progressistas estão tentando minimizar o nome de Deus como Pai, os muçulmanos, ironicamente, entendem melhor o que está em jogo. Isso ficou claro na recente polêmica sobre Alá ocorrida na Malásia. Alguns muçulmanos tentaram proibir cristãos de traduzirem a palavra Deus como Alá, na Bíblia malaia, alegando que isso iria confundir os fiéis muçulmanos mais simples. Essa atitude pode parecer ridícula, mas por trás de tal preocupação existe uma afirmação teológica válida. Apesar de Alá ser um nome genérico (o equivalente árabe do hebraico El), para os muçulmanos ele adquiriu, com o tempo, status de um nome próprio. Como tal, carrega uma carga teológica diferente do "Alá" entendido por judeus e cristãos. Desta forma, Alá é identificado de maneira única com o Islã, e não com o Judaísmo ou o Cristianismo.
Os cristãos fazem uma afirmação semelhante quando dizem que a designação Pai, Filho e Espírito Santo é única e própria do Deus a quem adoram. Ao utilizar esse nome divino em sua liturgia, a Igreja está dizendo que essa história, e nenhuma outra, cria e molda sua identidade única como povo de Jesus Cristo. Um nome genérico, mesmo com muitos adjetivos descritivos, não distingue adequadamente a identidade cristã da muçulmana. Tanto judeus quanto maometanos poderiam muito bem dizer que adoram a um Deus que é misericordioso, compassivo, santo, e assim por diante. Os adjetivos podem ser multiplicados infinitamente, mas eles não somam em nada o nome da Trindade. Os muçulmanos podem até reconhecer um relacionamento especial ao identificarem Jesus como profeta de Deus; mas só a Igreja cristã pode confessar a adoração ao Pai do nosso Senhor Jesus Cristo. Quando a paternidade divina é eliminada, a Igreja perde sua identidade diferenciada.


VAZIO

O abandono do substantivo "pai" em referência a Deus, portanto, deixa um vazio no coração da história cristã. E esse abandono traz consequências para os rituais de adoração pública que, em muitas tradições da Igreja, costumam ensinar os crentes a entenderem essa história e os convidam para participar da mesma. Esses rituais, muitas vezes, incluem a recitação, por parte de todos os presentes, de certos credos ou leituras comuns. Mas, sem a linguagem da paternidade, as recitações públicas não podem mais valer-se de nomes divinos que justapõem dois ou mais termos paradoxais, como "Pai Todo-Poderoso". Derivado do Credo dos Apóstolos, esse termo é utilizado na doxologia conclusiva da oração da Eucaristia da Igreja Católica: "Por meio dele, com ele e nele, na unidade do Espírito Santo, toda honra e glória é tua, Pai todo-poderoso, para todo o sempre". Já o Anglican Alternative Service Book (1980) se dirige a Deus como "Todo-poderoso, nosso Pai celestial", e suas orações eucarísticas invocam um "Pai santo, rei celeste, todo-poderoso e eterno Deus".
Tais justaposições, como diz o estudioso Gordon Lathrop, revelam o mistério de Deus como poderoso, mas, ao mesmo tempo, amoroso, santo e íntimo de seus seguidores. Isso não significa que Deus é às vezes um, às vezes outro; mas que ambos o são ao mesmo tempo. Em contraste, as liturgias modernas tendem a dirigir-se ao Senhor ou como "Deus todo-poderoso", ou como "Deus misericordioso", mas raramente como as duas coisas. Quando tais justaposições se tornam uma raridade, a adoração perde o seu sentido de mistério divino – e nós começamos a ter a sensação de que Deus ou é muito distante ou muito bom.
Outra estratégia para a eliminação de uma "linguagem sexista" é simplesmente evitar o uso de pronomes masculinos para Deus. O problema, no entanto, é que se tem de recorrer à repetição da palavra "Deus" diversas vezes, ou então buscar alternativas, geralmente pronominais, para usar no lugar de "ele mesmo", ou "ele", ou "seu". Até mesmo alguns protestantes conservadores estão começando a aceitar essa inovação. Mas, evitar o uso de pronomes pessoais para Deus minimiza involuntariamente a sua natureza pessoal. Isso pode não parecer uma grande concessão no Ocidente, onde um discurso cristão ainda é assumido. Por aqui, quando Deus é mencionado, as pessoas geralmente assumem que ele é o Deus cristão. Contudo, na Ásia, onde há "muitos deuses e muitos senhores" (conforme I Coríntios 8.5) e onde a realidade suprema pode não ser pessoal, nós precisamos falar de Deus em termos pessoais. Não fazê-lo, por medo de ofender outras consciências, é simplesmente desastroso.
Logo, os cristãos têm boas razões para insistir em tratar a Deus como Pai, sobretudo na liturgia, onde a história cristã é refeita. "Pai" não é uma palavra culturalmente condicionada, e sim o nome próprio de Deus, dado por revelação divina. É assim que ele é identificado e nomeado em relação ao seu Filho. O que está em jogo não é uma questão de estilo linguístico ou uma abordagem politicamente correta, mas a identidade divina trinitária, que afeta, inevitavelmente, a identidade da Igreja. Jogar esse jogo da linguagem inclusiva traz um alto custo teológico que supera, de longe, qualquer ganho que pudesse existir.



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