01/07/2015

Justificação e Santificação.


Por Jose Miguez Bonino. `
É escritor e teólogo Metodista.Este texto é parte do livro Metodismo releitura latino americana. Cap. 3.

Tem o metodismo identidade teológica própria? Há em Wesley uma contribuição singular para a compreensão do Evangelho? O tema tem sido frequentemente debatido.
Os que têm tentado deduzir do fundador do metodismo uma teologia sistemática não têm obtido maior êxito. Trata-se de desinteresse, de latitudinarismo teológico ou simplesmente de uma mente de segunda classe, incapaz de pensar profundamente? Por outro lado, Wesley mostra uma curiosidade intelectual muito ampla, leituras extensas da História, Teologia e piedade – incluindo seu grande interesse, por exemplo, pelos padres gregos ou pelos místicos espanhóis. É verdade que habitualmente se impacienta diante das sutis distinções teológicas, especialmente quando conduzem a polêmicas que lhe parecem desviar a atenção da questão  fundamental. Entretanto, quando crê ver em perigo o que no seu entender é central ao Evangelho, não vacila em lançar-se na batalha com toda sua enorme energia. Quais são estas coisas “centrais” pelas quais está disposto a lutar?

Se retomarmos o tema proposto no começo do capítulo precedente, buscaremos esse centro na relação entre justificação e santificação: como constitui esse novo “sujeito”, sócio digno e fiel de Deus em seu pacto? Essa pergunta tem, por sua vez, duas pressuposições. Uma é a teológica: Deus tem um propósito de renovação que abarca a totalidade da humanidade e do universo, o que ele chama, às vezes, “o designo grandioso da salvação da humanidade” (the Grand design for the salvation of mankind).
A outra pressuposição é de ordem pastoral: o anúncio desse plano e o convite para participar ativamente nele – a evangelização e o chamado para a conversão – são a tarefa pela qual se mede a fidelidade do cristão e da Igreja. Tudo que se relacione com esta tarefa não é negociável, articulus stantis et cadentis ecclesiae. Um dos mais eruditos e penetrantes estudiosos de Wesley, o professor Albert Outler, situa a peculiaridade da teologia de Wesley – dentro deste horizonte de evangelização – em:“...sua doutrina da graça de Deus (a presença ativa de seu amor a existência humana) na qual a preocupação dominante é uma síntese vital da ênfase evangélica na soberania de Deus e a ênfase católica na participação ativa do homem: uma mescla dinâmica de previdência, justificação, regeneração e santidade.”
Outros intérpretes, como Lindstrom, Newton Flew, Sangster, preferem enfocar a peculiaridade do metodismo a partir da doutrina da santificação e da perfeição. Teodore Runyon me parece explicitar bem a unidade de ambos os temas nestas palavras:

“Quando a perfeição cristã vem a ser a meta do indivíduo, nasce a esperança
fundamental de que o futuro possa superar o presente. Concomitantemente,
manifesta-se uma insatisfação a respeito de todo o estado presente – uma
insatisfação que provê a ponta crítica necessária para manter em movimento o
processo de transformação individual.

 O sujeito e a obra humana numa teologia evangélica da salvação.

“Para Wesley”, dizíamos no começo, “a santidade segue sendo (a partir da
experiência de Aldersgate (*) a meta da redenção e da vida cristã”. Daí a necessidade de manter uma estranha unidade de justificação e santificação. Certamente, esta é também a intenção dos Reformadores: “Assim como Cristo não pode ser dividido em partes, argumentava Calvino, também são inseparáveis estas duas coisas, a saber, a justiça e a santificação, uma vez que as recebemos juntas e solidariamente nele”. Mas os reformadores parecem haver achado impossível construir defesas que impedissem um
deslize subsequente, que nos tempos de Wesley havia chegado a tal consistência que uma testemunha insuspeitável como Karl Barth não pode evitar dizer, precisamente em relação a Zinzendorf (com quem Wesley manteve uma dura discussão sobre o tema, a ponto de leva-lo a separar-se da comunidade morávia), que “neste monismo a necessidade de boas obras só se mantém em forma letárgica e espasmódica”. O próprio Barth suscita a questão da natureza desta unidade e se pergunta se é possível estabelecer uma ordem – um prius e um posterius – nesta relação, não no sentido cronológico  mas em termos de correlação teológica. Sua resposta (como poderia ser outra?) é que:

“...no simul (na simultaneidade) da vontade e ação única de Deus, a
justificação é primeira como a base e segunda como pressuposição; a santificação é primeira como meta e segunda como consequência, e portanto, ambas são superiores e ambas subordinadas” .

É uma formulação teológica excelente, que Wesley haveria aprovado cordialmente. Mas na dialética de sua piedade e de sua pregação, a preocupação que mais o envolvia era o “plano grandioso” – a ordem de intenção. E aqui a santificação tem uma indiscutida primazia. Deus se propõe a criar um povo santo, “e esta intenção se torna realidade atual, visível, experimentada quando os homens e as mulheres se voltam a ela na fé”.
Não é difícil resumir brevemente os elementos centrais do ensino wesleyano sobe isso. O pecado corrompeu toda a raça humana, empanando a imagem moral de Deus no homem, corrompendo a totalidade do seu ser e tornando-o incapaz de corrigir-se e de voltar-se para Deus. O pecado não causou somente a corrupção da espécie humana, senão que lhe desfigurou a própria natureza. A consequência última é a morte espiritual e física do homem.
Entretanto, a humanidade não ficou em estado de total impotência moral. A graça preveniente, consequência universal da expiação, devolve ao homem um certo discernimento moral, a possibilidade de reconhecer a lei de Deus (ainda que não de guardá-la) e de responder ao convite do Evangelho. Noutras palavras, Deus restitui ao homem pecador, pela graça, uma dose de livre arbítrio. As boas ações realizadas nessa liberdade são, pois, fruto da graça e não admitem mérito algum.
A salvação é inteiramente obra de Deus, totalmente livre e devida somente ao seu amor “misericordioso, ilimitado, sem discriminação e imerecido”. Realiza-se pelo sacrifício vicário de Cristo, cujos méritos, recebidos por graça mediante a fé, nos proporcionaram a redenção. A fé salvadora é “uma segura confiança... de que Cristo morreu por meus pecados, que me amou e se deu a si mesmo por mim”. Esta justificação significa o perdão dos pecados – original e atuais – e a regeneração, a saber, uma troca em nossa alma, pela qual passamos do pecado para uma vida de justiça. A santificação começa imediatamente depois da justificação e opera uma transformação pela qual nossa mente carnal é transformada à semelhança do “sentir que houve em Cristo Jesus”, ou seja, que as motivações, pensamentos e ações tornam-se motivadas pelo amor.
Normalmente, esta experiência de justificação (perdão) está acompanhada por uma consciência de haver “nascido de novo”, de ser “filho por adoção”. O Espírito Santo testemunha para e com nosso espírito. Ainda que o renascido não cometa faltas externas, persiste nele um resto de pecado, que a santificação vai paulatinamente vencendo até chegar à “perfeição” (“plena santificação” ou “a grande salvação”). Esta pode ser alcançada nesta vida, seja progressivamente ou instantaneamente, ou ser recebida no momento da morte. Em todo caso, a perfeição continua sendo uma aspiração e uma bênção que se espera da graça divina. Não significa perfeição absoluta no sentido de infabilidade moral, senão que todas as ações e pensamentos são nascidos
do amor de Deus “derramado pelo Espírito em nossos corações”.

AS BOAS OBRAS

Faz-se necessário retomar alguns aspectos deste sumário, que nos permitam captar melhor sua importância para nosso propósito. O primeiro tem que ver com a idéia de uma “dupla” justificação: a primeira, inteiramente pela fé, no momento da conversão, e a segunda “não sem obras”, no juízo final. Esta ideia de uma “dupla justificação” – expressão em si mesma suspeita para o protestantismo desde a época da Reforma – parece colocar a Wesley decididamente fora do campo protestante. Creio que o problema deve ser colocado noutros termos. Wesley jamais imagina uma operação humana autônoma, à parte da graça de Deus. Consequentemente exclui totalmente a
ideia do mérito. Não há, neste ponto, nenhuma discrepância com os reformadores; com Lutero a insistir que a verdadeira fé é um princípio ativo que “não pode deixar de fazer boas obras”, ou com Calvino, para quem a fé nos inclui “em Cristo”, não só em forma forense, mas de maneira ativa e efetiva pela obra do Espírito Santo. Talvez, simplificando, poderíamos dizer que, onde os reformadores insistem, criticamente: “sem Cristo não pode haver obras boas”, Wesley formula, positivamente: “Em Cristo, há boas obras”.
A distinção, todavia, é importante. Tem que ver, por uma parte, com dois “estados” de ânimo distintos que obedecem a duas situações espirituais e históricas diversas. Os reformadores, particularmente Lutero, vivem a busca medieval de salvação do poder do diabo, da ira e da morte. Wesley, ao contrário, sente a necessidade moderna de achar-se a si mesmo como “pessoa” – nova, útil, ativa. Na crise da instituição eclesiástica e do sistema sacramental medieval, os reformadores encontram em Deus mesmo a segurança de salvação: Deus, que se pôs em nosso favor em Jesus Cristo (Lutero) , que desde a eternidade nos destinou para sermos seus (Calvino) – é Ele, e não nossa vacilante consciência ou a instituição eclesiástica, o suporte seguro de nossa vida. Consequentemente é necessário excluir qualquer outra “mediação” que possa reintroduzir nossa salvação no terreno lamacento da ambiguidade humana. No começo, durante e no fim da carreira, não há outra segurança a não ser a graça divina.
O que os reformadores não observaram é que procedendo assim, introduziram uma perigosa dicotomia, cujas graves consequências não tardariam a se fazer sentir. Por uma parte, a ação de Deus e a ação humana eram colocadas como “simétricas”e contrapostas. Para afirmar a primeira, era necessário desqualificar a segunda. Consequentemente, toda afirmação da segunda resultava em detrimento da primeira. Assim, o que quis ser uma afirmação da salvação, “não pelas obras”, veio a ser “sem obras”, quando não “apesar das obras”. Este deslize é o que horroriza a Wesley no quietismo morávio e o faz reagir escandalizado quando lê, no Comentário de Lutero a Gálatas o que ele considera uma linguagem “blasfema a respeito das obras e da lei de Deus” (Journal, 15 de junho, 1941). Por outra parte, as boas obras aparecem em
determinada ortodoxia protestante tardia como separadas da vontade do homem concreto adjudicadas ao Espírito Santo, que assim vem a ser, não a presença encarnada do poder e da iniciativa divina, mas um “sujeito substitutivo” do homem em sua realidade histórica. Com razão o teólogo reformado Otto Weber diz que, numa orientação, “...se tornariam as obras em si mesmas, separadamente da pessoa e já não se afirmaria que “um homem bom e piedoso faz obras boas e piedosas”, senão que “espera passivamente que o Espírito as faça nele”. A pessoa seria assim deixada de
lado como pessoa. Teríamos aqui um docetismo pneumatológico” .

Como propor o tema das obras sem comprometer a prioridade da ação divina nem anular o sujeito humano? Numa aguda crítica à teologia protestante com respeito à relação entre salvação e História, Juan Luis Segundo lembra que “o desaparecimento, desde a Reforma, da noção de mérito na teologia protestante, parece ter minado a possibilidade de uma teologia da História”. A razão: Considerando que a noção de mérito (quer dizer, “o valor eterno” do esforço e da intenção justa”) era o único que dava à ação histórica um valor relacionado com o Reino, com o seu desaparecimento:

“este último laço de união entre ambos é cortado pela teologia da salvação só pela fé, pelos méritos exclusivos de Cristo”.

Poderia alegar-se que na noção de “vocação” de Lutero se ajunta um novo vínculo, ou que o valor do “terceiro uso da lei”, em Calvino, cumpre esse mesmo fim.Entretanto, não há dúvida de que, historicamente, o Protestantismo não teve defesas contra essa religiosidade da “graça barata”que Bonhoeffer teve que denunciar. Juan Luis Segundo não pretende, por certo, retomar a noção de mérito e reconhece plenamente a importância da gratuidade da salvação que defenderam os reformadores. Mas o problema persiste e Juan Luis invoca a possibilidade de superá-lo em uma “síntese fecunda e libertadora”:

“A fé liberta o homem da preocupação da lei para que possa lançar-se a um
amor criador e não fique paralisado pelo problema da segurança e da salvação
individuais, cujo único critério estático, pode ser a lei. Porém, esta entrega do
nosso destino a Deus não deve levar a pensar que Deus tem interesse em que o deixemos trabalhar só, como se toda colaboração nossa fosse um definhamento para a sua glória. Pelo contrário, o Deus cristão é um Deus que, amando, necessita ser amado. Necessita de nossa criatividade para a sua obra e por isso pede que lhe entreguemos nosso próprio destino” .
A meu ver a noção moderna de “trabalho alienado” pode ajudar-nos a ver mais
claramente o problema. De fato, se entende melhor a polêmica luterana contra as “obras” e os “méritos” quando observamos que o que atacam é um “uso” das obras como um produto do homem que se converte em coisa, numa “moeda”que serve para transigir as relações com Deus e com o próximo .
Tal coisificação das obras “em si mesmas” despersonaliza as relações com Deus e com o próximo. As “obras” se interpõem entre o homem e Deus: é possível por elas estabelecer um pacto com Deus no qual não estaríamos pessoalmente involucrados – quer dizer, donde estaria ausente a fé em seu caráter pessoal de “ficucia”. E estaria ausente, precisamente, porque a “obra” ficou separada de seu autor, é uma “prestação” religiosa ou moral, objetivada em relação a uma lei . Ao contrário, tanto Paulo quanto Lutero conhecem uma “obra do amor” ou “obras da fé” que são a pessoa mesma como sujeito ativo envolta numa relação pessoal de entrega a Deus e ao próximo. Não cabe, neste caso, a noção de mérito como se as obras tivessem um “valor de intercâmbio”, mas cabe, sim, a noção de “significado”, ou “validez” das obras como inseparáveis da pessoa que as realiza e como incorporadas ao propósito e à ação de Deus. Realmente, assim consideradas como “a pessoa mesma em seu caráter de sujeito ativo”, as obras são a única manifestação histórica da pessoa, são o testemunho da historicidade concreta da obra de Deus, como afirmação do Cristo juanino. “Crede-me pelas obras mesmo” (João 10:38; cf. 5:31-36 et passim) ou a polêmica afirmação de Tiago: “eu, por minhas obras, te mostrarei minha fé” (Tiago 3:18).

A luta de Wesley em defesa da santificação tem, na minha opinião, o valor de reivindicar este caráter ativo da pessoa crente e de rechaçar qualquer separação de fé e amor. 

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