Reverendo José do Carmo da Silva – Mano Zé Metodista do Brasil
Ele está chegando. E como sempre sua proximidade já causa
certo desconforto. Nos últimos anos ele tem sido precedido, ou mesmo em sua
vigência, por uma série de contestação nas redes sociais. Ele evoca um passado
de dor, sofrimento, humilhação... Rememora uma parte da nossa história que
causa vergonha, tanto que Rui Barbosa mandou queimar os registros dela, embora
alguns digam que ele fez tal coisa para que os interessados não buscassem
indenização junto ao governo. Falo da escravidão, falo do Dia 20 de Novembro –
Dia da Consciência Negra. Sim, tal data estranhamente ainda é muito contestada
no Brasil. Estranhamento, uma vez que o Brasil é um país que possui a segunda
maior população negra fora da África, atrás apenas da Nigéria. Estranhamente,
pois foi o Brasil a ultima nação escravocrata a abolir a escravidão negra, fato
ocorrido há apenas 127 anos. Estranhamente, pois de acordo com dados da
Secretaria Nacional da Juventude da Presidência da República, no Brasil, 60
jovens negros são assassinados a cada dia. Apesar dos dados acima, “aliens”
dizem que não há racismo no Brasil... Eu “concordo” com eles, talvez racismo
exista em “Tão Tão Distante” (Muito Muito Longe), Reino onde vivem os pais da
princesa Fiona, noivado do ogro Shrek – aqui no Brasil existe uma inigualável
democracia racial.
As redes sociais se tornaram uma arena na qual acontecem os
mais diversos confrontos ideológicos. Lamentavelmente tais confrontos nem
sempre são amigáveis, não se circunscrevem ao campo das ideias, do diálogo, da
reflexão, a belicosidade se manifesta até mesmo em espaços que teoricamente
deveriam ser de paz e amor, o religioso. Nessa terra de combates, carente de
bons debates, dentre outras, além da pergunta: “Qual é o Dia da Consciência
Branca”, de 2012 para cá, a mais nonsense de tais contestações é um videozinho
com um minuto e 20, onde Morgan Freeman, um famoso ator de cinema, afro
americano, em entrevista a Mike Wallace, declarou, que a melhor solução de
acabar com o racismo é “parar de falar sobre ele”. O vídeo viralizou, se
espalhou nas redes sociais tal qual fogo em rastilho de pólvora... Gente que
nunca teve um argumento para combater o Dia da Consciência Negra, agora se
sentia municiada, armadas até os dentes, com o dedo no teclado, para com um só
clique acabar com essa prosa de “Dia da Consciência Negra”... Em gestos eivados
de insinuações tais como: "cala a boca", “aprenda com ele”, “deixa de
coitadismo”, “pare de falar disso”, tendo conhecimento de meu envolvimento com
a causa do povo negro; muitos me enviaram e ainda me enviam tal vídeo.
A um desses, eu respondi: Desfrutando do conseguido por
outros negros e negras que sofreram violência, prisão e mesmo morte pela
igualdade entre brancos e negros, é muito fácil hoje para um negro rico e
famoso como o Freeman falar tal coisa depois do que Rosa Parks, Martin Lither
King Jr., Malcolm X, e muitos outros negros e negras americanos fizeram na luta pelos Direitos Civis, luta
que se deu especialmente nas décadas de 1950 e 1960. A outra pessoa que
ironicamente me perguntou qual a razão de um Dia da Consciência Negra no
Brasil, e afirmou que isso é racismo inverso, coitadismo e coisa e tal - eu
respondi que para quem consegue ler o ontem e observar o hoje tal data se
explica pelo fato de que de forma direta, institucionalizada durante quase
trezentos e cinquenta anos os brancos não tiveram consciência, trataram negros
como bestas, seres inferiores, comeram-lhes suas carnes no pelourinho, nos
espancamentos, nos dentes quebrados a martelo, no corpo marcado com ferro em
brasa, arrancaram-lhes até as almas, e depois após muitas fugas, lutas,
debates, projetos, os “libertaram” lançando-os a margem da sociedade,
abandonados a própria sorte, por meio de um decreto que simplesmente diz: “A
Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D.
Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral
decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1.º: É declarada extinta desde a data desta lei a
escravidão no Brasil.
Art. 2.º: Revogam-se as disposições em contrário.”
Após o acima decretado quem saiu indenizado foi o senhor ex
- proprietário de escravos, pois perdera sua propriedade, sua mão de obra, é a
partir de então que o racismo se instala no Brasil, tal qual nos EUA após a
Guerra da Secessão (1861-1865), sob a bandeira do: “livres, mas não iguais”. A
abolição é um processo que só ficou no inicio, e que favoreceu muito mais aos
outrora senhores de engenho, e pasmem, aos imigrantes brancos, que aqui
chegavam para ocupar o lugar dos negros libertos. Aos imigrantes, pessoas
pobres oriundas da Europa, segundo Tau Golin, jornalista e historiador:
“Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um
espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que
pudesse semear o seu sonho. E lhes alcançaram juntas de bois, arados,
implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta,
os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares não
conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram
foi em condições módicas. Sendo cotistas do Brasil puderam superar a maldição de
miseráveis, pobres, servos, e de execrados socialmente. Muitos sequer podiam
montar a cavalo, hoje, seus descendentes são até patrões de CTG, mas condenam
as cotas, a mão, a ponte, o vento benfazejo, que mudaram a vida de suas
famílias. No início, no século XVIII, sobre os territórios dos charruas,
minuanos, kaingangs e guaranis se aplicou a cota de “sesmaria”, um módulo de
algo em torno de 13.000 (sim, treze mil) hectares. Se exterminou dois povos
nativos para se formar a oligarquia. Em seguida, na metade do mesmo século, aos
casais açorianos, destinaram-se “datas”, equivalentes a 272 hectares. No século
XIX, aos imigrantes, concederam-se as “colônias”, de mais ou menos 24 hectares.
E vieram as colonizadoras particulares e as secretarias do Estado sobre os
territórios dos kaingangs e guaranis. E depois a reforma agrária. E mais os
programas de expansão da frente agrícola no Brasil central, no Mato Grosso e na
Amazônia, com filhos do Rio Grande, na maioria as primeiras gerações dos
imigrantes.”
Muitos descendentes dos supracitados favorecidos hoje são os
que vociferam contra as cotas para negros e indígenas.
Ainda há aqueles que dizem: “Ao invés de “Dia da Consciência
Negra” deveríamos comemorar o “Dia da Consciência Humana”... Frase bonita,
cheia de “humanismo”!! Confesso que a supracitada frase apesar de ser carregada
de negacionismo da luta dos negros brasileiros, tem de minha parte certa
concordância, todavia, penso que, o Dia da Consciência Humana surgirá quando
olhando o enorme fosso de desigualdade social causado pelo excludente processo
histórico, no qual está lançado a grande maioria de negros e afro-brasileiros,
os indígenas, as mulheres, as crianças, os brancos pobres, efetivamente houver
ações que instaurem justiça equitativa. Só se poderá falar de “Dia, ou Era da
Consciência Humana”, quando aqueles que foram e são desumanizados receberem o
que lhes é de direito, principalmente o resgate da autoestima e plena
igualdade, vivendo na prática, na concretude da vida, o que está no frio papel
do artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”
Em tal processo, reflexões em datas voltadas para os
seguimentos marginalizados ajudam, confesso que a História do Brasil é a
História do Negro Brasileiro, e tal História não pode ser reduzida a um Mês ou
a um Dia da Consciência Negra, todavia, Racistas e suas ideologias nos roubaram
trezentos e cinquenta anos de vida, e no pós abolição mais cento e vinte sete
anos de inserção social, diante de Deus e da justiça dos homens, eles e o
estado brasileiro nos devem até nossas almas, não bastando isso, ainda
questionam e querem nos roubar o conquistado direito de um mês ou Dia para
reflexão sobre nossa negra história. Os adeptos do “silencionismo
morganfreemaniano” são pessoas que acham que o não falar sobre um problema traz
a solução para ele, dentro dessa linha de raciocínio a proposta é: Não mais
falemos de Lei Maria da Penha e acabará a violência de gênero, deixemos de
falar e se extinguirão por si mesmas todas as formas de violências contra as
mulheres. Não falemos de corrupção ela não mais existirá... Atualizando, frente
ao ocorrido em Paris no ultimo dia 13 de Novembro, não mais falemos de
terrorismo e não mais haverá atentados... E pra não dizer que não falei de
Mariana – MG -, não mais falemos sobre negligências na prevenção de desastres ambientais
e eles não ocorrerão... Que me perdoe Morgan Freeman, e os “silencionistas”,
mas eu vou continuar falando sobre racismo e outras questões que lhes soam aos
ouvidos como inoportunas.
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