Por Pastor e Teólogo Ariovaldo Ramos
Jesus subiu ao monte para falar com seus discípulos, e eles entenderam,
porque, tão logo, ele se assentasse, como era costume dos mestres em Israel
quando ensinavam, eles se aproximaram dele. Sabiam que Jesus não falava à
multidão do alto do monte, mas, da base da praia e, portanto, se aproximaram
dele para ouvir o que tinha a dizer, exclusivamente, aos discípulos. Jesus, olhando
para a multidão de filhos de Abraão, ali reunida, que aguardava pelo Messias,
com grande expectativa, começou falar do quadro que aquela multidão sugeria.
Primeiro citou os pobres, os despossuídos, e havia muitos ali, porque
era uma época de opressão e os romanos possuíam tudo e a todos que quisessem; e
os líderes de Israel apoiavam a opressão, então, os pobres eram explorados de
todas as formas. Os artesãos, dos quais Jesus fazia parte, e os pescadores eram
extorquidos por impostos desmedidos, porque Herodes, na tentativa de angariar o
favor de Tibério César, com o intuito de ser, por este, declarado único
governante de Israel, tratava de alimentar os cofres romanos. E, eram, também,
pobres de espírito, porque, os líderes, que usurparam a fé judaica,
sonegavam-lhes a palavra da libertação, sugerindo-lhes, na prática, a
subserviência à prática religiosa romana, que lhes reconhecia o direito ao
poder, e poder absoluto.
Disse, então, Jesus, que os pobres eram felizes, porque deles era o
Reino de Deus. Ou seja, que o governo de Deus seria exercido em favor deles, o
governo de Deus, com a sua Justiça, imporia uma nova lógica naquele estado de
coisas, uma lógica de libertação e de restituição, por isso eles eram felizes.
Jesus estava deixando claro que o Reino de Deus, o governo de Deus, já estava
na terra, e faria justiça aos explorados.
Continuou Jesus, agora, falando dos que choram, dizendo que eles eram
felizes porque seriam consolados; e havia muito pranto, porque a opressão era
insuportável; basta pensar que os jovens eram arrancados de suas casas e
forçados a alistar-se como soldados no exército de Roma; portanto, os motivos
de choro eram inúmeros; as mulheres eram violadas e tratadas como lixo. Eram
tempos de muito clamor! Mas, Jesus disse que a felicidade era chegada a eles,
porque seriam consolados: seus filhos não seriam mais forçados a nada que não o
quisessem, nas normas do direito, e suas mulheres seriam respeitadas e
honradas.
Jesus, então, passou a falar sobre os mansos, isto é, aqueles que foram,
na prática, destituídos de seus direitos, em outras palavras, aqueles cujos
direitos não foram respeitados. Jesus mencionava, especificamente, o direito à
terra, que vinha sendo solapado desde o momento em que a elite de Israel
decidiu que não cumpriria lei do jubileu, isto é, que não libertaria os
escravos, não perdoaria as dívidas, e não faria a reforma agrária ordenada na
lei do jubileu, que, a cada 50 anos, renovava a sociedade, pela prática do
perdão, da libertação e da reforma agrária. Jesus, contudo, disse que eles eram
felizes, pois, com a chegada do governo de Deus, seriam libertos da escravidão,
suas dívidas seriam perdoadas, e a terra lhes seria devolvida, haveria a
retomada da lógica da exigibilidade do direito, explícita na lei do Jubileu.
Num ambiente como aquele sobravam pessoas com fome e sede de justiça,
porque tudo o que não havia era justiça; todos os direitos tinham sido
solapados; a lei de Moisés não valia mais; os próprios líderes de Israel já não
se pautavam pela sua lei, a não ser quando queriam condenar os que lhe eram
contrários; os fariseus, na qualidade de pretensos mestres, constrangiam os
fiéis a lhes sustentarem subservientemente; os saduceus, a classe dos
sacerdotes, transformaram o acesso ao templo num lucrativo negócio, haja vista,
o uso do átrio dos gentios para a prática de negócios de câmbio e venda de
animais, e de utensílios para o culto, sob o auspício da família sacerdotal,
comandada por Anás. O grito por justiça era incessante, mas, Jesus disse que
estes eram felizes, porque o seu clamor fora ouvido e seriam fartos em sua sede
e fome por justiça.
E havia os misericordiosos, aqueles que, em meio à penúria, e a fome se
lembravam de ser solidários, de partilhar, de repartir, de socorrer ao mais
necessitados, de dividir o pouco, na convicção de que todos tinham direito ao
mínimo que fosse. Jesus diz que eles eram felizes porque Deus os trataria com a
mesma misericórdia, se lembraria deles na sua penúria, na sua angústia, mas,
principalmente, na sua solidariedade. O governo de Deus trataria com justiça e
honra aqueles que, no estado de injustiça, não permitiram que a escassez os
fizesse egoístas e insensíveis, a ponto de não se virem como o próximo do mais
carente. Nessa categoria estavam contemplados os que, tendo sido, por
decorrência histórica, parte da elite, romperam com a mesma, tomando o partido
da justiça, do pobre e do necessitado. Na nova ordem os seus dons seriam
bem-vindos, ainda que o "status" viesse a ser, naturalmente,
alterado, pois, a nova ordem primaria por fraternidade e comunitariedade, numa
"hierarquia" horizontal, como viveu a Igreja em Atos dos Apóstolos.
Seriam felizes, também, os que oraram pedindo por um milagre na
história, os que sempre souberam que Deus havia feito uma opção pelos pobres,
pelos necessitados, porque assim primava a sua lei, desde sempre. Aqueles que
nunca entenderam que a opressão e a injustiça fossem resultado da vontade de
Deus; aqueles que sempre souberam que Deus não promove o mal, e pelo mal não é
tentado, e que a maldade é fruto da desobediência a Deus, nunca uma concessão
divina, mantendo, assim, o coração limpo. Estes veriam as suas orações ouvidas
na história, embora, a sua esperança estivesse, também, para além da história,
alcançando o transcendente, o que, também, seria satisfeito.
A chegada do governo de Deus, com sua justiça, significava, também, a
consecução da felicidade desejada pelos que pautaram a sua conduta pela busca
do Shalom, a paz, que sintetiza a vontade de Deus, e que implica,
necessariamente, na satisfação, com qualidade, das necessidades básicas de todo
ser humano, incluindo a espiritualidade; e que suscita a consciência do
direito, pois, o Shalom de Deus se cumpre, necessária e exclusivamente, na
coletividade, não há Shalom onde haja qualquer tipo de exclusão.
Agora, Jesus se lembra dos lutadores, os que, em nome da justiça, se
rebelaram, se opuseram, às custas da própria vida. É nessa categoria que Jesus
coloca os seus próprios discípulos e os profetas que os antecederam. São
lutadores pela justiça, e, como tal, perseguidos, caluniados e injuriados. Mas,
a exemplo dos profetas têm grande reconhecimento nos céus, isto é, são vistos e
honrados como os agentes de Deus na história, por isso, a eles, o júbilo. Pois,
assim, como os profetas, na sua luta e militância, tornaram possível a vinda do
governo de Deus com sua justiça, pela vinda do Messias, os lutadores pela
justiça veriam o efeito da presença do governo de Deus na história conhecida, e
na que virá no novo céu e na nova terra.
A essa altura os discípulos deviam estar a perguntar do que Jesus estava
falando, e onde eles entravam nisso. Jesus, de fato, falava de uma profecia de
um desejo, de seu papel e de seu amor como Messias, entretanto, ele não estaria
presencialmente na vanguarda desta mudança, porque ele veio para consumar o
sacrifício. Logo, ele olhava para uma multidão que queria saciar, mas, que não
conseguiria, naquele momento, porque a sua missão primeira era vencer a morte.
Os discípulos cumpririam o desejo de seu amor e imprimiriam na história a sua
profecia. Seria através deles que as bem-aventuranças ganhariam espaço e lugar
na realidade humana, antes mesmo do novo céu e da nova terra.
Os discípulos seriam os protagonistas naturais da profecia e do desejo
do Cristo, por causa de seu caráter, de seu modo de vida e de sua atuação na
história. Ao falar sobre isto, o Cristo anunciava a transformação que sua
vitória sobre a morte propiciaria a todos os seus discípulos: um novo caráter e
uma novo poder e forma de atuar na sociedade humana. O caráter, referido na
figura do sal que não pode perder o sabor, seria incorruptível, por isso toda a
agressão aos discípulos teria de partir da mentira e da calúnia. O novo poder e
forma de atuar na história, referida na revelação de serem luz do mundo, cuja
luminosidade seria demonstrada pelas boas obras, seria o poder e a influência
que exerceriam na humanidade, a ponto de trazer à realidade o padrão de
justiça, que é o que Jesus chama de felicidade, descrito nas
bem-aventuranças.
Portanto, as boas obras, possibilitadas pelo novo poder, que levariam as
pessoas a glorificarem o Pai Nosso, seriam as que propiciariam a mudança na
sociedade humana em direção à justiça do governo de Deus, descrita na razão do
porque gente tão espoliada era considerada como bem-aventurada pelo Cristo.
Cristo anunciava, portanto, que a sua vitória traria uma vida nova aos
seus discípulos. Ele se tornariam iluminadores, a partir da luz que receberiam
em si. Cristo faria de seu discípulos seres luminosos, cuja iluminação
produziria justiça, uma nova realidade onde todos desfrutam de tudo que Deus é
e de tudo o que Deus doa. E isso se daria a partir da posição que ocupassem na
sociedade, isto é, cada discípulo de Cristo se veria como um agente de mudança,
onde quer que viesse a estar, para que a justiça vingasse em todos os sentidos,
em todos os lugares e relacionamentos.
Esta colocação do Cristo, declara que a atividade do seus discípulos,
além de contemplar a proclamação por meio da pregação, contempla a ação,
intencionalmente, política, de formação e de transformação da sociedade. Embora
a atividade dos discípulos não tivesse como finalidade a implantação definitiva
do governo de Deus na terra, mas, sim, a demonstração de que este governo já
estava presente, ainda que não de forma plena, o que só se dará no novo céu e
nova terra, seria uma atividade iluminadora intensa, o suficiente para gerar,
ainda que sem a plenitude do novo céu, a justiça exposta nas bem-aventuranças.
Estava claro, então, o que caracterizaria a ação dos discípulos na
história: as suas boas obras, fruto, também, do Espírito do Cristo:
produziriam libertação ao despossuído; consolo aos que choram; devolução da
liberdade aos escravos, e da terra aos camponeses; fartura de justiça aos
famintos dela; reconhecimento aos que socorreram aos necessitados; resposta de
Deus à oração dos que esperam por Deus na história; reconhecimento aos que
promoveram a paz de Deus entre os homens; reconhecimento e acolhimento aos
lutadores pela justiça.
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